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    Ex-jogador de futebol, Adirley Queirós virou diretor de cinema premiado

    KARLA MONTEIRO
    ENVIADA ESPECIAL A CEILÂNDIA (DF)

    31/12/2014 02h00

    Uma rua plana, desprovida de graça, nenhuma árvore para amenizar o calor do planalto central. O endereço especifica: Ceilândia Norte, o que dá a entender que existe uma outra metade da cidade-satélite, a Ceilândia Sul. Mas tudo parece igual, a monotonia arquitetônica da pobreza em contraste com a exuberância de Brasília.

    Quando o portão da casa 30 se abre, surge um sujeito de bermuda, camiseta, tênis, sotaque sertanejo. Com nome de jogador de futebol, Adirley, ele –quase– cumpriu a profecia. Jogou bola profissionalmente no Ceilândia Esporte Clube até tomar um caminho inesperado. Virou cineasta.

    Aos 44 anos, com quatro filmes no currículo, Adirley Queirós tornou-se um dos nomes mais festejados do cinema contemporâneo. Sua última obra, "Branco Sai. Preto Fica", que entra em cartaz em março, foi consagrada no Festival de Brasília, com quatro prêmios, incluindo o principal: o troféu Candango de melhor longa-metragem de 2014.

    Sérgio Lima/Folhapress
    Adirley Queirós no quintal de sua casa em Ceilândia, onde também funciona sua produtora 5 da Norte
    Adirley Queirós no quintal de sua casa em Ceilândia, onde também funciona sua produtora 5 da Norte

    "Branco Sai. Preto Fica" percorreu 17 festivais, nacionais e internacionais. Misturando documentário e ficção científica, em que os personagens do futuro precisam de passaporte para entrar em Brasília, retrata uma famosa invasão policial a um baile black de Ceilândia, o Quarentão, em março de 1986.

    O título é uma alusão à ordem dada aos presentes por policiais durante a ação naquela noite de pancadaria: "Branco sai, preto fica".

    FORMAÇÃO

    "Até 28 anos, nunca tinha ido ao cinema. Minha referência eram os filmes que eu via na TV: Lúcio Flávio, 'Mad Max', 'Blade Runner', Bruce Lee e 'Django', o primeiro, do Sergio Corbucci", conta Adirley. "Meu cinema é influenciado por este passado de bangue-bangue espaguete."

    Sua produtora 5 da Norte ocupa um quartinho sem janelas, anexo à casa de Adirley. Falante, bem articulado e, sobretudo, engajado, ele começou a fazer filmes para refletir o seu espaço, a cidade-satélite cantada por Renato Russo em "Faroeste Caboclo".

    "Ceilândia nasceu em 1971. Minha família veio para cá em 1977. O nome Cei é uma abreviação de Campanha de Erradicação de Invasões. Este lugar é o primeiro aborto territorial", comenta o diretor.

    Bebendo um café após o outro, ele continua, empolgado: "Quando Brasília surgiu, surgiu também, perto do aeroporto, na cara de todo mundo, uma favela de migrantes, espelho, oposto, a total negação da proposta da nova capital".

    "O governo, então, numa operação de guerra, arrancou as pessoas e as jogou aqui, a 40 quilômetros de Brasília. Era um descampado, sem nada. Tipo Dogville', do Lars Von Trier. A única coisa que havia era a demarcação de onde as casas poderiam ser construídas", relata.

    VENDEDOR DE BALAS

    Paralela à história do Brasil que abortou Ceilândia, a história do mesmo Brasil que pariu Adirley. Ele nasceu no interior do Goiás, em Morro Agudo, numa família de seis irmãos. Quando tinha cinco anos, os pais resolveram tentar a vida na nova capital do país, a promessa de futuro. Acabaram em Ceilândia.

    "Meu pai vendia na rodoviária os bolos que minha mãe fazia. E eu e meu irmãos vendíamos balas", diz. "Com 12 anos, fui jogar futebol. Percorri a carreira de jogador, do infantil ao profissional. Aos 24, me machuquei. Não era um craque, mas ganhava a vida."

    A primeira ideia que teve para sobreviver foi dar aulas particulares de matemática. Em 1998, ele prestou um concurso para o serviço público. O local da inscrição era a UnB (Universidade de Brasília).

    "Em frente ao prédio de Comunicação, vi turmas pegando sol no gramado, conversando, fumando. Achei aquilo massa demais. Fazer comunicação virou obsessão."

    Adirley passou no concurso para a Secretaria de Saúde do Distrito Federal –é funcionário público licenciado– e passou também no vestibular para cinema, que escolheu por ser o curso menos concorrido do Departamento de Comunicação da UnB.

    "Na primeira aula, o professor exibiu um filme do Eisenstein, A Greve'. Achei aquilo muito louco, não cabia no meu entendimento. TV de 14 polegadas, filme preto e branco, dez da manhã, batendo sol na tela", lembra.

    Nos sete anos de curso –quase foi jubilado–, ele diz que o maior proveito foi, enfim, "enxergar Ceilândia".

    "Eu estava fora de tempo e de lugar na universidade. Havia um aluno de periferia, eu, e um negro. Comecei a refletir sobre a Ceilândia nesta época. Como eu não frequentava Brasília, não enxergava o processo de apartheid", diz.

    Para tirar o diploma, Adirley fez o primeiro filme: "Rap, O Canto de Ceilândia", de 2005, premiado como melhor curta pelos júris oficial e popular do Festival de Brasília.

    "Gravei mais de cem horas. Saí para fazer um discurso, não era exatamente um filme", assume o diretor.

    Em 2009 fez o curta "Dias de Greve", uma síntese do pensamento cinematográfico do vendedor de balas que virou jogador de futebol que virou cineasta.

    "Ganhei um edital destinado a filmes para homenagear a capital federal. Só que o meu filme tem uma única imagem de Brasília. Fiz um filme sobre Brasília de costas, uma cidade que nunca existiu para quem nasceu na periferia", diz Adirley. Seus dois longas "A Cidade é Uma Só?" e "Branco Sai. Preto Fica" também foram bancados com dinheiro público via editais.

    Veja o trailer de "Branco Sai. Preto Fica":

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