Um mergulho nas contradições internas de um homem, personagem de si mesmo, é o processo de escrita que nos aguarda ao iniciarmos a jornada pelas páginas de "Relatório ao Greco", último livro do escritor grego –e, sobretudo, cretense– Níkos Kazantzákis (1883-1957).
Em tradução feita diretamente do grego moderno, por Lucília Brandão, temos acesso a um livro singular do autor, mais conhecido no Brasil por obras vertidas para o cinema, como "A Última Tentação" e "Zorba, o Grego".
A edição resulta de um projeto de "crowdfunding", pelo qual o público podia fazer doações ou reservar cópias do livro antes da publicação.
Divulgação | ||
Cena do filme 'Ate que a Sbórnia nos Separe' |
O homem cindido entre o racional e o controlado, entre Deus e o Diabo, entre todas as contradições vivenciadas pela mortalidade humana: eis as presenças e vozes dos antepassados que constituem o narrador dessa obra de tom memorialista peculiar em que, ao mesmo tempo, a história de Creta e da Grécia é perpassada em revista.
Kazantzákis, o narrador, oferece ao leitor a oportunidade de acompanhar, por seu olhar que se transmuta com a passagem do tempo, um pouco do mundo helênico, de sua cultura e da ampliação de horizontes que outras terras e conhecimentos trouxeram, especialmente a filosofia.
O livro é dividido em pequenos capítulos, cujos títulos curtos parecem fazer referência ao mosaico da vida desse homem que retorna ao menino, para se reconstruir pela memória. Da família, a figura do pai carrancudo e forte; da mãe que parece representar toda a casa e a extensão da família.
Lembranças que se desdobram e falam das invenções de garotos que pensam poder mudar o mundo e assistem às intolerâncias humanas, à guerra entre turcos e cristãos e à libertação de Creta.
MUDANÇAS
Entre traços das experiências de uma individualidade em formação e de uma terra em processo de mudanças políticas, após os anos de estudo em Atenas, temos Kazantzákis, personagem dele mesmo, retornando a Creta, às sensações que deixara, as quais provocaram nele o processo da escrita. Antecedido por febre e calafrios, assim surge em palavras seu primeiro texto: "A Serpente e o Lírio".
"Escrevia e me admirava, era deus e fazia o que queria, transformava a realidade, criava-a como queria que ela fosse, misturei irrevogavelmente verdades e mentiras, já não existiam mais verdade e mentira, eram apenas suave massa e a manuseava, tornava a manuseá-la ao meu bel prazer, sem pedir permissão a ninguém."
Tal é o texto que provoca o leitor e o convida a seguir não a vida de um homem, mas a narrativa a pensar um viver que se propõe a chegar ao cume do calvário, a experimentar paixões e ideais.
Dessa forma se constitui "Relatório ao Greco": uma prestação de contas a outro cretense, o pintor El Greco (1541-1614), cujos traços pareciam almejar as alturas do divino e representaram a fúria do Cristo ante os vendilhões do tempo.
A esse a quem o narrador chama de general em seu prólogo, seu avô ancestral, é oferecido o relatório a ser ouvido, como tributo à raça de Creta a quem nosso narrador não envergonhou.
RELATÓRIO AO GRECO
AUTOR Níkos Kazantzákis
TRADUÇÃO Lucília Soares Brandão
EDITORA Cassará
QUANTO R$ 100 (488 págs.)
AVALIAÇÃO bom