Ignorando que está no presente, Carlos Nejar escreveu "Matusalém de Flores" como uma máquina do tempo total –capaz de inventar uma época inexistente– que o levou diretamente às origens do romance. Pelo dom da ubiquidade, a obra data simultaneamente da novela cavaleiresca "Dom Quixote", da Bíblia, do romanceiro medieval e do amanhã. Do hoje, não.
O leitor fica sem fôlego, como se estivesse diante de um filme em clipes rápidos.
Qualquer cena é completa e se constitui em uma surpresa sensorial, tal como cada frase sua, pois carrega em si imagens –no sentido literocinematográfico– eletrizantes, surpreendentes, que prendem a leitura à maneira de um filme-romance e que explodem na cara do leitor.
Ajudou-o nessa tarefa seu personagem Noe Matusalém, que sobrevive desde sempre, ao contrário do Matusalém bíblico, falecido aos 969 anos. Por encanto, talvez por licença poética, prendeu o tempo em uma garrafa de símbolos sem espaço, pois, diz ele, não há tempo sem espaço.
Paula Giolito/Folhapress | ||
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O escritor Carlos Nejar |
Assim, conseguiu não envelhecer e pôde dar sequência às suas façanhas na cidade de Pedra das Flores, juntamente com sua amada Lídia –leia-se Dulcineia– e na companhia de seu fiel cão Crisóstomo –leia-se Sancho Pança.
O corpo de Noe Matusalém parece ser apenas o cavalo em que o personagem se incorporou, não lhe permitindo tomar cuidado algum com sua saúde ou com seu aspecto físico, nem ao menos envelhecer.
A monástica ascese de sua triste figura serve somente para cumprir o destino literário. Vivendo em um jogo de palavras, enquanto elas existirem ele estará vivo, pois elas o sustentam. Noe Matusalém é tão ocupado que não tem tempo para envelhecer.
Dos que foram aprisionados em sua garrafa, o principal símbolo é a palavra. Se Matusalém não morre é porque tem a palavra. Sobreviverá enquanto existirem as palavras.
Matusalém de Flores |
Carlos Nejar |
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Qualquer homem vive pelo tempo de suas palavras. As palavras o sustentam mais do que suas carnes. Matusalém não encanece porque virou literatura. Que é a missão de todos nós. Fazer-se literatura, tornar-se literatura.
Ficou encantado, e o seu encanto subsistirá enquanto houver humanidade. Seu espírito subsistirá porque foi protagonista de um romance completamente original, e suas aventuras heroicas lhe concedem graça e humanidade.
E viverá sempre enquanto houver lembrança, tal qual o Dom Quixote ou, melhor dizendo, Matusalém de Flores.
MATUSALÉM DE FLORES
AUTOR Carlos Nejar
EDITORA Boitempo
QUANTO R$ 43 (216 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo