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    Adaptação para o cinema de 'Cinquenta Tons de Cinza' é sadismo politicamente correto

    BARBARA GANCIA
    DE SÃO PAULO

    11/02/2015 02h00

    Nos primeiros cinco minutos você já percebe tudo o que precisa sobre "Cinquenta Tons de Cinza": que a humanidade está perdida.

    Ah, esse danadinho chamado inconsciente, sempre a nos pregar peças! Se a psicanálise nos ensina que o "eu" não é Senhor nem mesmo dentro do seu próprio quintal, então o livro "Cinquenta Tons de Cinza", de E. L. James, não poderia ter causado comoção mundial.

    E o inevitável filme que dele originou reforça a ideia de que vivemos dentro de uma espessa nuvem de "cinquenta tons de cinza fumaça" e que não enxergamos um palmo a nossa frente. A construção dos personagens não se sustenta, sadismo politicamente correto não existe.

    Divulgação
    A atriz Dakota Johnson em cena de "Cinquenta Tons de Cinza"
    A atriz Dakota Johnson em cena de "Cinquenta Tons de Cinza"

    O tal Christian Grey do ator Jamie Dornan tem meio metro de altura, tipão de mascote de "boy band" e só condiz com o macho viril e dominador se o paradigma for o Justin Bieber.

    A heroína, Anastasia Steele, criada pela atriz Dakota Johnson, é igualmente improvável. O único recurso dramático de que usa para nos convencer de que está sedenta de amor é morder o lábio inferior.

    Faz você ficar na dúvida se entrou no filme da Cinderela que espera a abóbora se transformar num Mercedes.

    A fantasia da virginal Anastasia Steele tem glacê de romance vitoriano ambientado numa fábrica da Mattel.

    Ela ficou "se guardando" para seu príncipe, e ele se manifesta na forma de um bonito, cheiroso, funcional no escritório, mas, sobretudo, de um podre de rico e superbem sucedido –ai, ai, ai, que bandeira: Anastasia (nome de conto de fadas) quer ser sustentada! Acho que ela só sobrevive na mente das leitoras de "Sabrina", será?

    Um tapinha não dói, ensina a música, toda mulher gosta de apanhar, pregava o mestre, e sadomasoquismo que se preze é fruto de exploração das mais recônditas profundezas.

    Pois a cada época sua versão cinematográfica. Nos 1970 tivemos "Histoire d'O"; nos 1980 fomos tragadas por "Gigolô Americano" ou pelo erotismo gastronômico de "9 ½ Semanas de Amor".

    Agora "involuímos" para um universo esterilizado de ambientes esteticamente perfeitos, que parece atender às necessidades do departamento de marketing dos grandes conglomerados do mercado do luxo.

    Aqui, o dominador não tem prazer no controle do outro, ele passa o filme inteiro, entre uma chicotada e outra, perguntando se a moça gostou (ué, desde quando sádico tem esse tipo de cerimônia?).

    E ela, uma masoquista de araque, apenas cede aos desejos dele para tentar arrumar um namorado nos conformes. Em nenhum momento sente prazer na viagem do Mr. Grey.

    NINFOMANÍACA

    Ou seja, é um desencontro total, sadomasoquismo sem gosto. Algo como um bombom sem cacau ou um café descafeinado, uma combinação que dificilmente vai despertar a imaginação de quem se divertiu em "Ninfomaníaca" (2013) ou até mesmo curtiu "O Diabo Veste Prada" (2006).

    Christian Grey, descobrimos, é sádico por causa de "traumas de infância", um "Dexter by Tom Ford", um bebê chorão carente que habita um mundo de lojas duty free.

    Ele não chega aos pés do perturbado marido vivido por Shia LaBeouf em "Ninfomaníaca". O play room do sádico parece uma loja de arreios para cavalos de polo com inspiração na Victoria's Secret.

    O momento em que os dois tentam estabelecer o contrato sadomasoquista que define limites me deu muitas saudades de Robert Redford e Demi Moore em "Proposta Indecente" (1993), em que os sentimentos ambíguos dos personagens são automaticamente transferidos para o público.

    É tanto moralismo papai e mamãe que você sai achando que acaba de assistir a um longo comercial de perfume.

    O Ken da Barbie, com sua anatomia capada, é menos alijado e bem mais sexy.

    CINQUENTA TONS DE CINZA
    (Fifty shades of grey)
    DIREÇÃO Sam Taylor-Johnson
    ELENCO Dakota Johnson, Jamie Dornan, Jennifer Ehle
    PRODUÇÃO EUA, 2015, 16 anos
    QUANDO estreia nesta quinta (12)
    AVALIAÇÃO regular

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