"Fui escolhida pela literatura. Tive essa sorte", definiu a escritora mineira Conceição Evaristo, 68, em mesa realizada no sábado no Salão do Livro de Paris, que tem neste ano o Brasil como convidado de honra.
A biografia da autora, um dos nomes menos conhecidos na delegação nacional de 43 embaixadores das letras que veio à França, sugere que a autodescrição que abre este texto vai além da formulação poética. A co-curadora da participação brasileira, Guiomar de Grammont, diz acreditar que a obra de Conceição "promove uma redenção da realidade adversa que a cercou".
Divulgação | ||
Escritora Conceição Evaristo |
Nascida e criada numa favela de Belo Horizonte, a escritora lia gibis infantis com avidez e se admirava com os enredos imaginados pela mãe, semianalfabeta, a partir das ilustrações. Dona Joana trabalhou como empregada doméstica nas casas de escritores como Otto Lara Resende (1922-1992) e Alaíde Lisboa (1904-2006).
"Costumo dizer, com ironia, que a literatura me persegue a partir dos lugares íntimos da casa", afirma a autora, única de nove irmãos a ingressar no ensino superior. "Um evento marcou minha formação na juventude: a descoberta de 'Quarto de Despejo', de Carolina Maria de Jesus [diário com apontamentos sobre o cotidiano numa favela paulistana, nos anos 1950, lançado na década seguinte]."
Depois de obter o diploma de normalista em Minas (equilibrando o curso com as ocupações de babá, faxineira, vendedora de revista e professora particular), mudou-se para o Rio, onde cursou letras na segunda metade dos anos 1970.
Enquanto fazia a graduação, virou professora da rede pública. Anos depois, viriam mestrado e doutorado em letras. A escrita foi chegando sem pressa, a partir dos anos 1990, primeiro em contribuições para antologias, depois em voo solo.
"Sei que meu caso chama a atenção porque não é muito comum uma escritora brasileira negra participar de uma feira internacional. A gente fica como fruta rara", diz Conceição. "E não é que não tenhamos autoras negras. Geni Guimarães, Mira Alves, Ana Maria Gonçalves, Lia Vieira são só algumas."
Segundo a mineira, "a presença da negra fora das instâncias em que se está acostumado a vê-la causa furor": "Não seria a mesma coisa se isto aqui [o salão] fosse um festival de gastronomia em que baianas estivessem preparando acarajés."
Conceição lança em Paris a tradução de seu primeiro romance, "Ponciá Vicêncio" (2003), em que narra a mudança da personagem-título do meio rural em que seus ancestrais -negros como ela- foram escravizados para a cidade grande, onde acabará por estabelecer-se numa favela. A produção da autora inclui um segundo romance, "Becos da Memória" (ed. Mulheres), e o recente "Olhos d'Água" (contos; ed. Pallas), entre outros.
Ela é um dos nomes brasileiros mais assediados até agora no salão. Depois de falar numa mesa, no sábado, deu autógrafos, tirou fotos e conversou com leitores por quase uma hora. Na hora da visita do presidente francês, François Hollande, ao pavilhão do país, foi destacada para representar seus pares.
Mas não se deixa levar pelos afagos. Diz querer apenas trocar o rótulo de "escritora afrobrasileira" pelo de "brasileira" - e ser avaliada por sua capacidade de "construção estética e [pelo] labor literário".
Isso, bem entendido, só "quando houver incorporação plena de negros e índios": "Enquanto formos tratados como 'o outro', não. [Essa denominação] É uma opção ideológica, para marcar origens", conclui Conceição, que costuma costurar a seus textos de forte oralidade expressões provenientes das culturas bantas (benguela, cabinda, angola etc.) ainda usadas em Minas, como "pitimbado" (alguém sem dinheiro).
PARISIENSES
BEST-SELLERS
Na loja da Fnac que fica dentro do pavilhão brasileiro, alguns dos autores mais procurados até sábado (21) eram Ana Maria Machado, Bernardo Carvalho, Milton Hatoum (sobretudo seu "Dois Irmãos") e Paulo Lins, segundo vendedores ouvidos pela reportagem.
CHARLIE HEBDO
Em visita ao salão na manhã de sábado, o presidente francês, François Hollande, posou com o livro "La BD est Charlie Hebdo" (as HQs são Charlie Hebdo), compilação de 183 cartuns publicada logo depois do atentado ao jornal satírico, que deixou 12 mortos, em janeiro.
RELAXA, DILMA
Sempre pronto para um chiste, o escritor pernambucano Marcelino Freire disse que falta à presidente Dilma Rousseff "mais amor e mais humor", diante da crise política e econômica deste começo de segundo mandato.
"Desestressa, relaxa, Dilma! Estamos com você!"
RELAXA, DILMA 2
Logo depois, em reação a uma pequena, mas barulhenta manifestação de escritores pelo estande em que debatia, Freire não perdeu a piada: "A oposição foi rápida. Olha os tucanos aí". O protesto era contra a possível revisão da lei de direitos autorais, em debate na França.