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    'Filme testamento' está em toda a obra de Manoel de Oliveira

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    02/04/2015 19h16

    Foi em 1978: o cinema Action République, em Paris, estava lotado para a exibição extraordinária de um filme português. Quem patrocinava a sessão era Serge Daney, maior crítico francês naquele momento. O diretor do filme era um senhor já de idade que estava em pé, ao fundo da sala, ao lado de Daney.

    Houve certa inquietação na plateia quando se soube que o filme teria quatro horas de duração. Filme português, vá lá. Mas quatro horas?

    Pois bem, as quatro horas de "Amor de Perdição", adaptado do romance de Camilo Castelo Branco, correram sem que se ouvisse nem a respiração do público. Ao final, veio a consagração do velho cineasta. Manoel de Oliveira tinha, então, quase 70 anos.

    Ricardo Castelo/Efe
    O cineasta português Manoel de Oliveira, que morreu nesta quinta-feira aos 106 anos
    O cineasta português Manoel de Oliveira, que morreu nesta quinta-feira aos 106 anos

    Seria seu último filme? Eis a pergunta que, há anos, críticos e cinéfilos faziam. O fato é que muitos deles morreram, mas Oliveira prosseguiu. Seria absurdo dizer que sua obra começa em 1978 e ignorar o que veio antes, como "Douro, Faina Fluvial" (1931) e "Aniki Bobó" (1942), sua magnífica estreia na ficção.

    Mas foi com "Amor de Perdição", originalmente uma minissérie para TV que a coprodutora RTP desistiu de exibir, que sua carreira deslanchou. O fim do salazarismo e a associação com o produtor Paulo Branco lhe permitiram realizar uma série de filmes e garantiram a presença nos principais festivais.

    No Brasil, ficou conhecido porque vários trabalhos entraram na Mostra Internacional de São Paulo. E aqui filmou um pequeno porém notável segmento para o filme coletivo "Mundo Invisível", produzido por Leon Cakoff.
    Nos últimos 35 anos, esquadrinhou em dezenas de obras a Europa e seu destino, a literatura, a glória e o declínio de Portugal. Com desenvoltura e inteligência, usou tempos longos, pacientes, como instrumento de reflexão e aprofundamento temáticos.

    Nunca abandonou atores como Luís Miguel Cintra e Leonor Silveira, mas a partir de certo momento soube incorporar estrelas internacionais como Marcello Mastroianni, Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou Lima Duarte, que fez o padre Vieira idoso em "Palavra e Utopia".

    Oliveira morre aos 106 anos. Um pouco mais jovem apenas do que o cinema, deixa uma das grandes obras do modernismo cinematográfico. Seu "filme testamento", que tantos acreditavam ter chegado, desde os anos 1990, nunca se fez. Ou antes, está em toda parte nessa obra sempre surpreendente e magistral.

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