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    Piero Manzoni, famoso por enlatar fezes como arte, tem mostra no MAM

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    06/04/2015 02h10

    "Todos os artistas deveriam vender suas impressões digitais ou a sua própria merda em latinhas", escreveu Piero Manzoni, numa carta de 1961. "Se o colecionador quiser algo íntimo e pessoal, que seja mesmo do artista, ele pode comprar a sua merda."

    De fato, esse italiano entrou para a história da arte com uma obra em que alegava vender suas próprias fezes -ele criou 90 latinhas etiquetadas "Merda d'Artista" dois anos antes de morrer, por causa de problemas ligados ao alcoolismo, aos 29, em 1963.

    Radical, o trabalho ganhou dimensões inimagináveis para um artista então quase desconhecido. No pódio das estripulias que marcaram as vanguardas do século 20, a provocação de Manzoni talvez só perca para Marcel Duchamp e o urinol que expôs em 1917 como uma escultura.

    Mas sua obra foi muito além da boutade escatológica. Uma mostra agora no Museu de Arte Moderna, a primeira dedicada a ele na América Latina, redimensiona o artista como um dos criadores mais radicais da história, trazendo, além das latinhas, suas telas em branco e uma série de esculturas.

    "Aquela obra da merda é usada até hoje para condenar a arte contemporânea", diz Paulo Venâncio Filho, que organiza a mostra. "Isso retirou a potência e limitou a compreensão do Manzoni, que ficou presa a uma anedota vulgar. Todo o lado crítico de sua obra ficou um pouco obscurecido pela caricatura."

    Ou pelo mito. Manzoni, que vivia em Milão, sabia que precisava chamar a atenção num cenário artístico periférico. A Europa estava em ruínas, devastada pela Segunda Guerra, e Nova York já desbancara Paris como a capital mundial da arte. Era então que os primeiros lampejos de um novo momento começavam a dar as caras naquela terra arrasada.

    "Ele era um louco fabuloso, maravilhoso e simpático", lembra Almir Mavignier, artista brasileiro radicado em Hamburgo, que conheceu Manzoni e levou seus trabalhos para uma mostra que organizou em 1961. "Todo mundo duvidava dele, mas ele queria vencer e ter sucesso."

    Tanto que Manzoni chegou a comandar uma revista e abriu uma galeria em Milão. Ele queria ser porta-voz de uma nova estética da depuração, obras de arte que dissessem tudo com quase nada e tivessem, ao mesmo tempo, a presença do corpo do artista.

    Daí suas latas de excrementos, os ovos marcados com impressões digitais e as telas sem cor, feitas de isopor, plástico ou tecido -todas elas parte da mostra em São Paulo. Seus quadros brancos, sem uma gota de tinta, queriam expressar a própria presença e nada mais, uma materialidade tátil.

    Nesse sentido, Manzoni fez uma espécie de ponte entre o primeiro concretismo europeu, surgido nos anos 1920 na Holanda, e o minimalismo do grupo Zero, que então despontava na Alemanha com obras ancoradas na pesquisa sobre o comportamento da luz.

    MERDA CONCRETA

    Outras obras, como as linhas de tecido embaladas em caixas etiquetadas com o seu comprimento, também na mostra paulistana, levam a entender como Manzoni tentou reduzir uma obra de arte a seus mínimos elementos.

    "Ele queria sair da pintura, usar o material como expressão, a coisa concreta", diz Mavignier. "Mesmo o trabalho da merda não era um problema, nesse sentido, porque a merda é concreta. É aquilo que é."

    Ou não. Um clássico da arte conceitual, "Merda d'Artista" também levantou questões sobre a natureza de uma obra, já que abrir a latinha para ver o que havia dentro destruiria o trabalho. Manzoni provoca discussões até hoje com uma obra que pode não ser nada mais do que uma lata vazia.

    "Não é só o dejeto, a escatologia", diz Venâncio Filho. "Tem uma pureza nesse trabalho. Faz parte da lógica dele de mostrar a participação do corpo. Manzoni retomou ali uma certa radicalidade."

    Um de seus trabalhos mais audaciosos, aliás, também tem a presença do corpo. Manzoni atacou a ideia da arte como objeto de valor assinando o corpo de mulheres nuas, que chamou de "esculturas vivas".

    Mas por mais que lutasse contra a reificação da arte, o artista virou também uma grife, vendido, como as latinhas de fezes, a preço de ouro.

    "Vanguarda é um micróbio que cresce na sombra. Quando vem a luz, ele já se foi", diz Mavignier. "A lata de merda hoje é posta num altar, mas o que vale não é a merda nem a latinha. É a ideia."

    PIERO MANZONI
    QUANDO abre na terça (7), às 20h; de ter. a dom., 10h às 18h; até 21/6
    ONDE MAM, pq. Ibirapuera, portão 3, tel. (11) 5085-1300
    QUANTO R$ 6, grátis aos domingos

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