A primeira imagem de "Garotas", novo longa de Céline Sciamma –diretora do cult "Tomboy"–, mostra um grupo de adolescentes negras jogando futebol americano.
Dessa turma, a câmera segue os passos de Marieme (Karidja Touré), que percorre as quebradas de um bairro nada charmoso da periferia parisiense, revelando uma cidade diferente da que ilustra os cartões-postais.
No pequeno apartamento que divide com a mãe, o irmão e duas caçulas, a mocinha se ocupa dos afazeres domésticos, cuidando das menores, enquanto a mãe trabalha. Lida como pode com a autoridade opressora do primogênito, única presença masculina no lar, e leva uma vida escolar regular.
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Cena do filme "Garotas" ("Bande de filles"), de Céline Sciamma. Na cena, a atriz Karidja Touré, que interpreta Marieme (Vic) |
Nas próximas cenas, acompanhamos sua transformação. Após conhecer Lady (Assa Sylla), Fily (Mariétou Touré) e Adiatou (Lindsay Karamoh), uma turma que se encaixa no perfil de "as populares do bairro", Marieme se torna Vic (de "victoria").
Sob essa alcunha, conquista o mundo: muda o cabelo, veste roupas apertadas, diverte-se, sofre, namora, apanha, bate. Vive momentos de êxtase, em takes marcantes, como o que mostra as quatro num quarto de hotel cantando "Diamonds", hit de Rihanna.
A maneira original com que Céline Sciamma, 36, conta suas histórias, fugindo de estereótipos ou de atores famosos –no caso de "Garotas", o elenco é formado apenas por estreantes negras–, tornou-a uma realizadora incensada na França.
Ao se referir a ela, os jornais costumam emendar frases como "a mais precoce das cineastas de 30 e poucos anos" ("Le Figaro") ou "uma das diretoras mais dinâmicas de sua geração" ("Le Monde").
IDENTIDADE
A fama se deve ao sucesso do segundo trabalho, "Tomboy" (2011). O longa narra o drama de uma menina de dez anos que assume a identidade de menino até ser descoberta pela mãe. A obra integra uma sequência que trata da juventude, iniciada em "Lírios d'Água" (2007) e concluída com "Garotas" (2014).
"Fazer uma trilogia não foi decisão pensada", contou ela à Folha. "De repente, me vi com três filmes sobre o tema, resultado de uma mesma pesquisa sobre a construção da identidade feminina."
"Por outro lado, a adolescência torna possível contar todo tipo de história. É um gênero que pode ser realista e naturalista, mas também permite fantasiar, falar de amor, de amizade, uma mistura que adoro fazer."
Abordar essa fase foi também uma maneira de Sciamma construir sua personalidade como cineasta, aos 26 anos, quando filmou "Lírios d'Água". "Escolhi trabalhar com atores iniciantes, que, assim como eu, não tinham metodologia, estavam se inventando no cinema."
Casada com a atriz Adèle Haenel, uma das protagonistas de "Lírios d'Água", Sciamma não esconde que os dois primeiros longas têm muito de suas próprias crises.
"'Tomboy' é o que possui mais elementos autobiográficos, quando descreve a relação entre os irmãos ou a mudança do 'banlieue' [periferia] para o campo", diz.
Mesmo discorrendo sobre homossexualidade, crise de gêneros (que levou a direita francesa a fazer campanha contra a exibição de "Tomboy" nas escolas e na TV), violência e desigualdade, ela não se declara militante.
"Meu engajamento é com o cinema. Considero que a ficção nos ajuda a viver e a compreender o mundo, porque nos faz sentir emoções", descreve. "Claro que o feminismo e a problematização de gênero refletem minha percepção. Mas meu objetivo não é político. Se fosse, não faria filmes. Seria política."
A fuga de clichês tampouco é algo planejado, segundo ela. "Não mostro endereços icônicos de Paris porque nasci na periferia e sei como funciona. Quando se mora a 45 minutos do centro, você vem à cidade e fica perto da estação de trem que o levará de volta para casa. Não vai passear na Champs-Élysées."
Mas tudo isso pode mudar no próximo trabalho de Sciamma, ainda sem data. "Filmarei com atores profissionais, algo completamente diferente do que já fiz. Quem sabe um filme de terror."