Reescrever "O Estrangeiro", de Albert Camus (1913-1960), do ponto de vista dos árabes que não têm voz nem nome nos livros do escritor francês, nascido na Argélia e prêmio Nobel de literatura em 1957: foi esse o projeto de Kamel Daoud em "Meursault, Contre-enquête" ("Meursault, Contra-investigação"), cujo título remete ao personagem do romance camusiano.
Publicado em 2013 na Argélia, pela editora Barzakh, e em 2014 na França, pela Actes Sud (sem previsão para o Brasil), o romance foi finalista do Goncourt, o principal prêmio literário francês.
'O Estrangeiro' rendeu diversas adaptações
Bertrand Langlois/AFP | ||
O escritor algerino Kamel Daoud, em retrato feito na França em outubro de 2014 |
Mas também rendeu ao escritor uma "fatwa", decreto emitido por autoridade religiosa muçulmana –um imã argelino, no caso, que, como o ocorrido com o indiano Salman Rushdie, pede sua morte por "apostasia e heresia".
No caso de Rushdie, seu romance "Os Versos Satânicos" foi considerado blasfemo por um aiatolá iraniano, o que o obrigou a viver escondido por nove anos.
O que há de herético no livro de Daoud? Em dado momento, por exemplo, o raivoso narrador proclama: "A religião é um transporte coletivo que eu não pego. Prefiro ir até esse Deus a pé, não em viagem organizada".
Mas a "fatwa" também se deve às crônicas que Daoud escreve regularmente em jornais de Argélia e França. "Eles me reprovam por minha tomada de posição contra os extremistas islâmicos, porque falo com liberdade e conhecimento de causa [na juventude, o escritor foi simpatizante desses movimentos] e porque escrevo em francês; fui acusado de ser sionista e pró-francês", disse Daoud à Folha durante o Salão do Livro de Paris, em março.
Por segurança, Daoud, que nasceu em 1970, não dá detalhes sobre as precauções que toma quando está em Orã, cidade onde vive e que é cenário de "A Peste" (1947) –romance de Camus no qual a epidemia serve de alegoria da Europa sob o nazismo.
Mas ele não faz praça de sua condenação pela nova epidemia. "Minha morte pode chegar de qualquer jeito e a qualquer hora. Ao mesmo tempo, não me faço de herói, todo mundo está ameaçado, a civilização está ameaçada. Quando 200 estudantes são sequestradas pelo Boko Haram [grupo terrorista da Nigéria], acho indecente falar de mim."
AJUSTE DE CONTAS
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Se, na Argélia, Daoud é considerado um apóstata, na outra margem do Mediterrâneo sua heresia é de outra ordem –a heresia literária de se apropriar de um monumento da cultura francesa.
À primeira vista, o romance parece um ajuste de contas com Camus, que em "O Estrangeiro" jamais dá nome ao árabe assassinado por Meursault sem qualquer premeditação, "por causa do sol", como o anti-herói dirá durante seu julgamento.
Para a maioria dos leitores, "O Estrangeiro" é uma representação ficcional dos temas da gratuidade e do absurdo que percorrem a obra filosófica de Camus. No mundo árabe, porém, o anonimato da personagem, somado à hesitação de Camus durante a guerra de independência da Argélia (1954-1962), constitui motivo de rejeição.
O ensaísta palestino Edward Said chegou a dizer que o absurdo camusiano é uma sublimação da má consciência colonialista, que "os árabes de 'A Peste' e 'O Estrangeiro' são seres sem nome que servem de pano de fundo para a grandiosa metafísica europeia explorada por Camus".
"Meursault, Contre-enquête" é narrado por Haroun, o irmão (inexistente em "O Estrangeiro") do árabe assassinado, que aqui recebe um nome, Moussa, e uma biografia.
Mas engana-se quem pensa que Daoud endossa o veredicto de Said. "A literatura vai além dos condicionamentos imediatos da história. Confunde-se Meursault com Camus. É o que faz Said ao falar de um inconsciente colonial."
O romance de Daoud ironiza essa confusão, fazendo de Meursault o "autor" do livro que relata sua história –procedimento que o escritor define como metaficção: "Fiz a ficção passar por realidade para que meu próprio romance se tornasse real".
E, ao parodiar várias passagens de "O Estrangeiro", ele cria um jogo de espelhos no qual Haroun também comete um assassinato, desta feita de um colono francês.
Como Meursault, que foi condenado não só por seu crime, mas também por não ter chorado no enterro da mãe, Haroun é julgado porque seu delito ocorre logo após a independência, tornando-se crime comum. "Fiz esse deslocamento para tratar de outra forma de absurdo, o absurdo histórico. O que antes era guerra de libertação vira assassinato, quando no fundo é a mesma coisa."
Mas seu recurso estilístico mais ousado é se apropriar da forma de outro livro de Camus, "A Queda". Como neste, o narrador está num bar, onde conversa com um interlocutor invisível e faz uma meditação colérica sobre culpa e soberba –convertendo em homenagem a insolência de reescrever "O Estrangeiro".
O jornalista MANUEL DA COSTA PINTO viajou a convite do Bureau du Livre da Embaixada da França.