• Ilustrada

    Friday, 29-Mar-2024 12:09:00 -03

    CRÍTICA

    'Brasil: Uma Biografia' faz mergulho sensível e profundo na alma brasileira

    LAURENTINO GOMES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    09/05/2015 02h30

    "Brasil: Uma Biografia", de Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, é uma obra destinada a surpreender os leitores ainda na capa.

    Na definição clássica, biografia se refere à descrição ou ao estudo da vida de uma pessoa. Seria possível enquadrar nesse gênero literário a história de um país? Apesar do risco, o resultado não poderia ser melhor.

    O Brasil que emerge das 792 páginas deste livro é, de fato, um organismo fascinante, complexo, multicolorido, contraditório e desafiador, mais parecido com um ser vivo do que com o ente político, cultural e geográfico, por vezes insosso e quase inanimado, que em geral habita os trabalhos acadêmicos.

    Pedro Álvares Cabral, as capitanias hereditárias, os ciclos do açúcar e do ouro, Tiradentes, a corte de dom João, a Independência, Deodoro da Fonseca, Getúlio Vargas, Juscelino, a ditadura militar e a redemocratização –tudo isso e muito mais as autoras tratam em profundidade, como seria de se esperar em um bom livro de história.

    Ainda assim, fogem da tentação de narrar a trajetória linear e completa do país nos últimos cinco séculos. Como explicam na introdução, em vez escrever a história do Brasil, tarefa que julgam impossível em um único livro, decidiram "fazer do Brasil uma história". Por essa razão, acreditam que a biografia seja o melhor caminho.

    O livro se alicerça em dois bons ensaios –um na abertura e outro no fechamento– nos quais se definem algumas características com as quais o país tem convivido ao longo de sua história.

    Um desafio diz respeito à identidade nacional, marcada pela contradição entre o imaginário e a realidade. No imaginário, o país em geral aparece como um espaço idílico, de clima agradável, de natureza e valores exóticos, sem catástrofes naturais ou ódios declarados.

    Os brasileiros gostam de se definir como um povo alegre, honesto, trabalhador e hospitaleiro, produto de uma civilização mestiça, colorida e plural. Na prática, o Brasil não é e nunca foi a terra da promissão e do eterno futuro.

    A realidade que aparece no noticiário do dia a dia é violenta e desigual. As relações públicas e privadas são permeadas por um racismo silencioso e perverso. A corrupção persiste como um traço endêmico da esperteza e da falta de respeito pelos bens e interesses coletivos.

    IMPREVISTO SALVADOR

    Outra característica destacada pelas autoras é a do país milagreiro que desponta no futebol, na política, na economia e nas vidas dos milhões de brasileiros. É a mania nacional de procurar pelo imprevisto salvador, assim definido em uma citação do escritor Lima Barreto:

    "Tenazmente ficamos a viver, esperando, esperando. O quê? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois; quem sabe a sorte grande, ou um tesouro descoberto no quintal?"

    O resultado é um projeto de cidadania inconcluso, uma república de valores falhados, um povo que não tem paciência nem disciplina para construir soluções de longo prazo, à espera de um golpe de sorte ou de um "salvador da pátria", que proverá todos os benefícios esperados sem que se precise participar da política, debater, discutir. Seríamos assim "o país do imprevisto que dá certo".

    São esses alguns dos traços culturais destacados nos dois ensaios, mas o livro está longe de ser um enfadonho tratado de sociologia política.

    Em vez disso, é uma narrativa agradável, atraente e, por vezes, bem-humorada que mostra como, aos trancos e barrancos, portugueses, brasileiros, índios, africanos e imigrantes estrangeiros foram construindo uma civilização tropical improvável, por vezes resultado mais do acaso e da sorte do que de planejamento e determinação.

    É também repleto de curiosidades para encantar o leitor. Fica-se sabendo, por exemplo, que a palavra "pinga" vem do ambiente infernal em que se produzia açúcar nos engenhos coloniais: quando o caldo de cana fervia, o vapor era tal que se condensava no total e 'pingava' sobre as cabeças dos escravos, processo semelhante ao usado nos alambiques para a produção de aguardente.

    A expressão 'pardo", que hoje define a cor de milhões de brasileiros nos censos populacionais, originou-se de pardal, pássaro muito comum em Portugal e conhecido por suas penas rajadas e de tonalidade indefinida.

    OBRA ABERTA

    Brasil: Uma Biografia
    Heloísa Starling e Lilia M. Schwarcz
    livro
    Comprar

    "Brasil: Uma Biografia" é um livro que merece ser lido tanto pelas suas curiosidades e minuciosas descrições como também pelo mergulho sensível e profundo na alma brasileira, fundamental para entender o país de hoje.

    A obra avança até os tempos atuais, mas as autoras salientam que o Brasil é ainda obra aberta, recheada de perguntas e desafios.

    Por qual caminho o país seguirá adiante? Conseguirá consolidar a República e a democracia? Que papel desempenhará no cenário internacional? Será bem-sucedido no combate à corrupção?

    Essas perguntas demonstram que, além de terem escrito um belo livro sobre o passado, as autoras se preocupam em construir uma boa agenda para o futuro.

    BRASIL: UMA BIOGRAFIA
    AUTORAS Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 59,90 (792 págs.)
    AVALIAÇÃO muito bom

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024