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    'Consigo fazer qualquer música', diz sambista Nei Lopes

    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    29/05/2015 02h00

    Nei Lopes, 73, é autor de sambas antológicos, como "Senhora Liberdade". Esta não é a primeira vez nem deve ser a última em que trabalha com musical. Já em 1989 criou a revista "Oh, que Delícia de Negras!". E para 2017, centenário do samba, prepara "Samba dos Santos".

    Carioca do Irajá, é advogado pela Universidade do Brasil, hoje UFRJ, mas abandonou a profissão pela música -declarando-se "sambista por natureza e por opção".

    Foi chamado pelo jornalista e escritor Ruy Castro, colunista da Folha, para criar as canções do musical baseado em seu romance "Bilac Vê Estrelas" (Companhia das Letras, 2000), adaptado por Heloisa Seixas e Julia Romeu.

    "Lesa-pátria." É como Nei, descreve os musicais da Broadway que tomaram os palcos brasileiros na última década, à Folha.

    Confira a entrevista.

    Como foi o processo de compor para "Bilac Vê Estrelas"?
    As autoras me ajudaram muito, fizeram sinopses das cenas. Comecei com a letra, minha especialidade. Não escrevo música em pauta, então é sempre mais complicado. Fiz 18, estão em cena 15, com uma particularidade: são estilos da época, princípio do século 20.

    Quais?
    Olha, tem lundu, polca, xote, modinha, valsa. Para tanto, recorri à memória. Tenho 73 anos, sou filho de pais nascidos no século 19 e também tenho certo conhecimento da história da música brasileira. Gosto de Chiquinha Gonzaga, Anacleto de Medeiros, Ernesto Nazareth. Na hora de criar, ouvi mais ainda, para captar algumas chaves e truques, e coloquei nas melodias.

    Chiquinha era compositora de teatro musical.
    Para os músicos da época, a grande possibilidade de escoamento era o teatro. Eles têm uma profunda carga cênica no que fazem, e eu mergulhei por aí. Com um detalhe: antes de ser compositor de música popular no sentido mais amplo, eu fiz jingle, então tenho prática de compor por encomenda.

    Não tem nenhum samba no musical?
    Não. Porque o samba não existia na época. [risos]

    Você é conhecido como sambista...
    Sou sambista por natureza e por opção. Mas posso fazer qualquer tipo de música, mostrei isso agora, e no entanto não quero, não faço. Se pedissem e se me remunerassem devidamente, eu faria uns dois ou três pop rocks desses que rolam por aí, por dia. [risos] Já fiz isso, já trabalhei com publicidade.

    Você imagina o samba entrando também no teatro musical?
    Eu estou com um projeto sobre os cem anos do samba, "Samba dos Santos". São 18 quadros com todos os estilos, do samba bom, claro.

    Já está tudo composto?
    Já, todos inéditos. E cem uma trama mobilizante. Tem policial, tem amor, tem tudo dentro.

    O texto é seu?
    Meu. Foi criado pensando nos cem anos do samba, que serão celebrados agora em 2016 e 2017. Tinha um título mais longo, "A Sina e a Saga de Samba dos Santos". Samba dos Santos é o personagem. Dos Santos é um jogo de palavras com o sobrenome e os envolvimentos religiosos que a trama traz.

    Como você vê as montagens da Broadway no Brasil?
    O que eu acho é que é um [crime de] lesa-pátria. Os caras cometem, não um ilícito, claro, mas usando o sentido figurado... Porque vão buscar lá, imediatistas, sem dar oportunidade ao imenso universo de autores que o Brasil tem, de ganhar o seu dinheirinho. [risos] Pior ainda é ser incentivada por leis como Rouanet e outras tais, que teoricamente servem para dar apoio à criação brasileira.

    Tem também um boom de musicais biográficos, que deixam de lado o compositor.
    Os musicais que são calcados em sucessos, de parada e de execução pública, de modo geral não cumprem a finalidade de colocar em destaque a verdadeira música brasileira. A música de raízes profundas está se perdendo. Quando a gente viaja ao início da música popular, como é o caso de "Bilac", traz a possibilidade de as pessoas conhecerem o manancial do que se fazia na época e que gerou toda a grande música brasileira que veio depois. Quando você põe música de sucesso midiático num espetáculo, perde a chance de revelar quão rica é a grande música brasileira, da qual esse universo pop que circula hoje não passa nem perto, mais voltado para aquelas coisas que vêm de fora.

    Tem um grande compositor de musicais, o Chico Buarque, que está parado. Você sente falta dele?
    Ah, sim, claro. Não sei por que ele parou. Está preferindo escrever os livros dele, compor suas canções de vez em quando. Mas ele é o grande cara, já provou isso. E eu gosto muito dele, tenho uma profunda admiração. Não temos proximidade, mas pelo menos umas duas vezes já estivemos juntos no estúdio, gravando na mesma bolacha.

    Além de compositor, você é também escritor. Está lançando "Rio Negro, 50" [Record, R$ 35].
    A gente acaba de colocar no mercado e vai ter um lançamento festivo no dia 13 de junho. É um romance ambientado no Rio, na década de 1950, para colocar em evidência o protagonismo afro-descentente nesse período da vida brasileira. A década de 50 foi extremamente marcante para o povo negro carioca. Primeiro, é a década em que foi fundado o primeiro clube de negros no Rio de Janeiro, primeiro e único até hoje, Renascença Clube. Foi a década em que surgiu Acadêmicos do Salgueiro, uma escola de samba que revolucionou todo o conceito de desfile, escolas etc. O eixo de transmissão da trama é o futebol, porque começa no dia seguinte à Copa do Mundo de 1950 e chega até além da Copa de 1958, quando o Brasil conquista seu primeiro campeonato, com participação muito forte de jogadores afro-descendentes. Isso, tanto em 50 quanto em 58, sendo que em 50 os negros foram acusados de terem amarelado e provocado a derrota do Brasil. E outros eventos, outras manifestações. Por exemplo, a primeira festa de Iemanjá na orla carioca, que deu origem a essa celebração que perdeu todo o sentido religioso, mas nasceu daí: a queima de fogos na praia de Copacabana. É um rosário de de acontecimentos históricos e sociais e esportivos, em que o samba está profundamente bem representado também, no rádio, nos espetáculos musicais da noite carioca. Teve um espetáculo desses, do Carlos Machado, estrelado pelo Grande Otelo, em que o propósito foi contar a saga do negro no Brasil, um espetáculo chamado "Banzo Aiê". Isso tudo aconteceu na década de 50. É um trabalho que me dá muito prazer. Eu vivo dentro desse ambiente. Nada mais lógico, nada mais natural do que eu escrever sobre a minha vivência.

    Ouça

    (Da polca "Tout le Riô". No áudio, a canção em gravação improvisada, de ensaio)

    Nas luzes da vitrine,
    Lingeries e negligées
    Rendas, popelines
    Cachecóis e cache-nez
    As calças e os culottes
    De crochê e de tricô
    O Rio civiliza-se
    Em voo d'oiseaux
    Mostrando a tout le monde
    O que Paris lhe ensinou.
    C'est tout la même chose
    C'est tout le Riô!

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    "Escute aqui, Ô seu Ioiô,
    Vatapá a la bahienne
    Ofende a tradição nagô"

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