Ainda tem quem fale de "Longa Jornada Noite Adentro" (1941/42) e até de "Morte de um Caixeiro-viajante" (1949), mas é difícil não separar "Um Bonde Chamado Desejo" (1947) como a maior das três grandes peças americanas, respectivamente de Eugene O'Neill, Arthur Miller e Tennessee Williams.
Até em seus defeitos, a montagem de "Bonde" em cartaz em São Paulo comprova a vastidão de seus personagens e ação. Maria Luisa Mendonça, como Blanche DuBois, em especial, vai muito além dos limites melodramáticos na origem do papel.
O texto, a encenação de Elia Kazan –e depois seu filme– são considerados o divisor no teatro e no cinema do que restava de representação melodramática para a naturalista. Blanche seria o velho, e seu cunhado e algoz, Stanley Kowalski, o novo.
De forma alegórica, representavam a velha América "cordial", das grandes fazendas escravagistas e das aparentes boas maneiras, do próprio Williams, contra a nova, industrial, urbana, violenta.
Não resta muito disso, nem deveria, na interpretação arrebatadora de Maria Luisa Mendonça. A imagem de seu corpo rodopiando no final, mal se sustentando sobre o salto alto, com figurino, maquiagem e penteado desfeitos, levada pelo redemoinho, traduz uma tragédia individual e não qualquer alegoria coletiva.
Está nela a separação entre um contido realismo na primeira parte e uma tragédia explosiva na final. A própria Blanche marca a separação, ao se proclamar contra o realismo. Em ambas as divisões, porém, não é estanque.
Pontua o realismo com os devaneios de Blanche e com ironias que demolem a falsidade da realidade, provocando risos. Depois, em outra chave, se arrisca fisicamente, se enfeia, como se estivesse o tempo todo sob a temida luz no rosto, uma das muitas belas imagens de Williams.
Mais do que Kowalski, é a direção de Rafael Gomes a maior parceira de Mendonça. Embora tenha limitações pela juventude e relativa inexperiência, o encenador amontoa desafios de cenário, figurino e texto –é sua a tradução reveladora– para a atriz, que a estimulam à instabilidade física e emocional.
Este "Bonde" é chance de ver algo especial, memorável, num ator. Como descreveu Christiane Riera (1968-2012), que foi crítica teatral da Folha e era amiga da atriz, é um baita talento, com carisma no palco, exímio controle corporal e voz quente, frutos de sua natureza, combinada a dedicação e estudo. E bonita que só.
Por outro lado, aquele que deveria ser o catalisador da destruição de Blanche e de tudo o que é velho, o Stanley Kowalski de Eduardo Moscovis parece se esconder em cena. Não se aproxima da lendária interpretação naturalista –animal, pela crueldade– do Marlon Brando original.
Prejudica até o andamento da trama, que se perde quando ele, muitas vezes, esfria o que acontece à volta. Moscovis não é novato no palco, mas deixa escapar um dos grandes papéis do teatro por entre os dedos. Não encontra Kowalski. Passa despercebido até ao gritar "Stella! Stella!", uma fala histórica.
A irmã de Blanche, mulher de Kowalski, vivida por Virgínia Buckowski, se posta melhor. Sublinha as contradições de Blanche, compõe com ela uma boa dupla.
O cenário de André Cortez, quase uma casa de brinquedo, dá trabalho aos atores – não é prático, mas transmite a claustrofobia necessária. Os figurinos de Fause Haten são expressivos –e muito sensuais, no caso de Blanche. Já a trilha tem músicas de Radiohead a David Bowie, ótimas, mas que não se integram à peça. São quase intervenções externas, fora do tom.
UM BONDE CHAMADO DESEJO
QUANDO sex. às 21h30; sáb. às 21h; dom. às 18h
ONDE Tucarena - r. Monte Alegre, 1.024 - tel. (11) 3670-8455
QUANTO R$ 50 e R$ 70
AVALIAÇÃO muito bom