A dramaturgia de "O Homem Primitivo", comédia escrita, dirigida e interpretada pelo casal Pedro Cardoso e Graziella Moretto –em cartaz no teatro do Shopping Frei Caneca–, se desdobra a partir de uma revisita ao discurso feminista, com personagens e cenas criados como peças de uma breve argumentação teórica.
Ousados e habilidosos, Cardoso e Moretto montam, assim, um docudrama paródico, cujo esteio é a ideia de que a revolução só será possível com a valorização das características da mulher: para que elas deixem de ser injustiçadas, eles precisarão assumir as características femininas das quais abriram mão –e que os tornam frágeis aos olhos de uma sociedade machista.
O tom de paródia desestabiliza o espectador. A peça apresenta estudos históricos fictícios, com a reconstrução absurda, em vídeo, de como a sociedade machista teria nascido nos primórdios da civilização.
As brincadeiras relativizam o rigor do discurso. Defender o papel da mulheres é fácil, só que, hoje, nada substitui a eficiência política de quem dá o exemplo. Torna-se performático então sabermos que em cena está um casal, não necessariamente modelo de uma nova ordem.
A contradição é que o debate, como pretexto dramatúrgico, se submete a uma vontade não realizada, da qual personagens surgirão como ilustrações de nossa impotência, ironicamente sempre aos pares. O amor familiar é muito lindo.
A primeira situação apresentada na rede de múltiplas histórias que o espetáculo costura mostra um casal indo ao cinema. O homem se irrita ao saber que o filme escolhido não é um suspense, introduzindo assim o perfil crônico da peça, na qual situações psicológicas não são postas totalmente de lado, mas servem para decodificar padrões de comportamento imediatamente reconhecíveis.
Da conversa do casal, vai surgir o caso da empregada doméstica que, depois saberemos, apanhou do marido. Da história da empregada surge a história da psicóloga que a atende em um posto público. Cada personagem puxa outro, como se eles estivessem em uma ciranda, procurando um ponto de equilíbrio comum.
A combinação temática (feminismo versus machismo) e formal (paródia do docudrama) é perfeita para deixar a plateia bem ligadona. Moretto sabe trocar de tipos com destreza, Cardoso tem um controle fenomenal sobre a plateia.
Poucos espetáculos conseguem esse resultado, ser pop e erudito, ser rígido nas construções e aberto ao improviso, ser cômico e melancólico ao mesmo tempo. "O Homem Primitivo" é a peça mais inteligente do ano até agora.