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    crítica

    Tchékhov cria um mosaico vivo que se expande e que se estilhaça

    MARCELO MIRISOLA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    25/07/2015 02h15

    O narrador de "A Estepe" não é um garoto. Logo de início descarta-se aquele famigerado recurso de falar "a partir do ponto de vista" do personagem.

    O narrador é Anton Tchékhov (1860-1904), que se imiscui à personalidade do garoto que atende por Iegóruchka –e ambos, voz e garoto, à guisa de uma câmera em "travelling" permanente, cruzam a estepe russa aos trancos, barrancos e "moinhos de vento que parecem homenzinhos abanando os braços".

    A charrete leva Iegóruchka para estudar noutra cidade. Também são passageiros Kuzmitchóv, um comerciante de lãs que é tio do garoto, e o padre Khristofor, que, de vez em quando, tenta contemporizar o bullying que Kuzmitchóv comete prazerosamente contra o sobrinho pasmado.

    Recomendo a todos os clientes das uniesquinas da vida o primeiro diálogo entre o padre Khristofor e Kuzmitchóv, que larga esta: "Tem gente que tira algum benefício do estudo e tem outros que só confundem a cabeça".

    Como bem lembrou Rubens Figueiredo, responsável pela tradução e pelo prefácio do livro, as descrições da natureza feitas por Tchékhov se aproximam muito da etnografia criada por Tolstói. Todavia a grandeza de Tolstói não deixa o leitor comum vislumbrar a força de seu lirismo. Tchékhov também é grande, porém é mais generoso sob esse aspecto.

    Segundo o próprio Tchékhov, "A Estepe" trata de um amontoado de histórias sobrepostas umas sobre as outras, isto é, são relatos de caminhos e paisagens deixadas para trás, onde os crepúsculos têm a mesma mobilidade dos viajantes, onde vastidões lilases imóveis oscilam e se acomodam ao enredo.

    COBIÇA E LOUCURA

    O leitor irá se perguntar: não acontece nada? Sim, e não. Uma vez que a cobiça, a submissão e a loucura dos homens servem como extensão da paisagem.

    Um dos personagens mais fortes do livro é o sarcástico Solomon, irmão de um estalajadeiro que podia perfeitamente ser comparado às cruzes e aos cadáveres abandonados pelo caminho.

    Tchékhov registra delicadamente tudo o que floresce e fenece ao longo da jornada do pequeno Iegóruchka.

    A estepe "suspira de leve, com seu peito largo" e acompanha o movimento dos homens transidos. Não seria incorreto dizer que existe uma correspondência às vezes deslumbrante e às vezes melancólica entre o vaivém do garoto e a natureza imprevisível da estepe.

    Tão imprevisível quanto o autor que, abruptamente, resolve separar Iegóruchka do tio e do padre. A charrete que deveria levar o garoto a um destino incerto é substituída por um comboio igualmente incerto, não sabido e tão encantador quanto.

    O leitor há de pensar: Tchékhov se perdeu. No entanto, a estepe sugere outros homens esgarçados, outros sumiços e o mesmo abandono. A mesma paisagem.

    Um pouco depois, só a título de informação e retomada, o garoto reencontra o tio e o padre e chega a seu destino(?). Tchékhov cria um mosaico vivo que se expande e que se estilhaça e que, portanto, trai sua própria natureza –como se a vida pulsasse dentro de outra vida, feito poeira na estrada.

    A ESTEPE
    AUTOR Anton Tchékhov
    TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
    EDITORA Companhia das Letras/Penguin
    QUANTO R$ 24,90 (144 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo

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