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    Livro conta saga de 'vedetes-faquir', que jejuavam sobre camas de pregos

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE SÃO PAULO

    02/08/2015 02h15

    O livro "Cravo na Carne" conta a história de 11 garotas famintas pela fama –e que a saciariam passando fome.

    Houve um tempo em que beldades de biquíni se trancavam em urnas de vidro expostas ao público. Deitavam-se sobre camas de prego ou cacos de vidro, na companhia de cobras (supostamente extraíam o gás carbônico para fabricar veneno e purificavam o ar).

    E assim jaziam por dias ou meses, em jejum absoluto –embora pipocassem denúncias como a da garota que devorava macarronada à noite.

    Arquivo do Estado de São Paulo
    Suzy King, a 'deusa das serpentes', que tinha cobras chamadas Perón e Jânio Quadros
    Suzy King, a 'deusa das serpentes', que tinha cobras chamadas Perón e Jânio Quadros

    A imprensa adorava. De 1922 a 1959, gastou tinta com as jovens que transformavam seu suplício em espetáculo, numa espécie de "Big Brother" retrô e radical.

    Eram as faquiresas. No imaginário popular, faquir é o guru indiano tão asceta que consegue andar pelo fogo. O faquirismo, contudo, já foi modalidade de entretenimento.

    Suas versões femininas atendiam por nomes como Rose Rogé, que a imprensa julgava "bela demais para mulher honesta", e Suzy King, a "deusa das serpentes".

    Mas, se não fosse por Verinha, "Cravo na Carne" nunca teria sido escrito. Em 1958, um moleque de oito anos cruzou a cortina preta de um pavilhão em Campinas (SP) e viu a jovem loura em vestes azuis.

    Ela fumava sobre a cama de pregos, dentro da urna. À sua volta, bichinhos de pelúcia, bilhetes do tipo "você vai vencer!" e a bandeira do Brasil.

    Alberto Camarero, 65, nunca esqueceu daquela "mistura de santa com odalisca de carnaval". Já adulto, entrevistou meio mundo em Campinas, mas ninguém se lembrava de Verinha, nem mesmo o irmão que o levou ao show.

    Os anos passaram, o Google surgiu, e em 2012 ele encontrou Vera –única das 11 faquiresas ainda viva– com ajuda do pesquisador Alberto de Oliveira, 23, coautor do livro.

    Mas Verinha repudiava o passado. O tabu persistia nas famílias de todas. "As faquiresas eram a margem da margem. Até o povo do circo as marginalizava", diz Oliveira.

    Arquivo do Estado de São Paulo
    A faquiresa mineira Yone e seu marido, o faquir Lokaan
    A faquiresa mineira Yone e seu marido, o faquir Lokaan

    Para Camarero, "essa coisa da vedete do suplício, erótica mas santificada", caía mal para a moral da época. Se homens como Silki (1922-1988), dito o maior faquir brasileiro, ganharam até série na Globo com José de Abreu (1983), elas submergiram na história.

    O livro é sobretudo baseado em jornais da época e contempla vidas estilhaçadas por trás de caixotes de vidro. Caso da gaúcha Rossana, que se suicidou ligando o gás do aquecedor. O "Correio da Manhã" publicou um poema sobre a faquiresa "que viveu de fome" e "morre por fome de amor".

    No princípio, o ofício era visto como ato feminista. Em 1922, o jornal "O Paiz" louvou os oito dias de jejum de Rose Rogé: "O sexo fraco caminha".

    Oliveira atribui às meninas "o começo da contracultura no Brasil. Elas desafiavam as leis do homem e de Deus. E muitas cometeram crime."

    Em 1959, a "Folha da Manhã" registra cinco menções a faquiresas, todas em cadernos policiais –Chica das Pelancas teria sequestrado crianças, e Madame Verinha, roubado pulseiras de ouro.

    No mesmo ano, "A Última Hora" publica que Suzy King "pretendia explorar o povo com um espetáculo de jejum, desses bem manjados".

    Três anos antes, a imprensa se deliciava com Suzy, "a louca", que protestou de maiô e longas meias de nylon contra o dono de uma mercearia que acusara de lhe vender salsicha estragada –letalmente ingerida por sua serpente Café Filho (tinha também as cobras Perón e Jânio Quadros).

    Hoje, o Ibama provavelmente proibiria o uso das cobras, a vigilância sanitária barraria as urnas de vidro (onde se fazia até as necessidades), e feministas protestariam, apostam os autores.

    Para que esse passado não seja enterrado vivo, eles pedem que quem conheça outros casos de faquiresas escrevam para famaefome@gmail.com.

    CRAVO NA CARNE
    AUTORES Alberto Camarero e Alberto Oliveira
    EDITORA Veneta
    QUANTO R$ 49,90 (308 págs.)

    Arquivo do Estado de São Paulo
    Suzy King, faquiresa que fez sucesso nos anos 1950
    Suzy King, faquiresa que fez sucesso nos anos 1950

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