• Ilustrada

    Saturday, 27-Apr-2024 20:47:07 -03

    Livro revela obra da criadora dos vitrais da Catedral de Brasília

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A OLINDA (PE)

    06/08/2015 02h00

    Lá fora, uma chuva de agosto desaba sobre o imenso jardim da casa de Marianne Peretti em Olinda, nos arredores do Recife. Dentro, num escritório todo branco, a artista que criou os vitrais da Catedral de Brasília, única mulher no time de Oscar Niemeyer (1907-2012), relembra como mudou a cara da capital do país.

    A autora das formas arrojadas nas janelas modernistas de Niemeyer vive num sobrado colonial quase estrangulado pela mata. Sua obra, toda revista agora no primeiro livro a narrar sua trajetória, "Marianne Peretti - A Ousadia da Invenção", parece estar alicerçada no contraste entre épocas e cenários, um elo entre o modernismo utópico que movia o Brasil dos anos 1950 e tendências que moldaram a arte contemporânea.

    Filha de um pernambucano e de uma manequim francesa, Peretti, 88, nasceu em Paris e cresceu entre a boêmia de Saint-Germain-des-Prés, onde conheceu heróis da vanguarda literária da época, como Jean-Paul Sartre e Boris Vian, e as margens do rio Capibaribe, no Recife, lar da família paterna. "Eram as plantas e as flores daqui que eu achava maravilhosas", lembra. "Isso eu adorava mesmo."

    Não por acaso, seus vitrais foram tomando ao longo do tempo a estrutura orgânica de formas naturais, retalhos que lembram folhas, gotas d'água e raios solares –um contraponto à austeridade que Niemeyer primeiro tentou imprimir ao Distrito Federal.

    Mas a plasticidade ousada do arquiteto também arrebatou Peretti. No início dos anos 1970, ela estava em Paris quando viu na TV a sede da editora Mondadori, que Niemeyer acabara de construir em Milão com traços muito semelhantes aos do Palácio do Itamaraty, em Brasília.

    "Fiquei tão entusiasmada com aquilo que no dia seguinte peguei um avião e fui até Milão", conta Peretti.

    Pôs na cabeça que precisava conhecer o tal Niemeyer. "Fui até o Rio bater na porta dele. Ele abriu, e eu disse que tinha visto a obra dele. Ele adorou." O encontro em 1971 selou a colaboração entre os dois –que atingiu o auge com os imensos vitrais da catedral brasiliense, realizados mais de duas décadas depois.

    ESTREIA

    Mas antes, em 1973, Peretti criou seu primeiro trabalho na capital, um vitral na capela do Palácio do Jaburu (residência oficial do vice-presidente), espécie de ensaio para a escala monumental da catedral.

    "Ela deixou áreas vazadas nesse vitral para fazer dialogar os ambientes de um lado e de outro. Usa o ferro não como junção, mas como traço expressionista", diz Tactiana Braga, uma das organizadoras do livro. "É um vitral clássico em sua estrutura, mas que assume a luz dos trópicos."

    Bilíngue (em francês e português), a publicação sobre a artista traz textos dela e de Jacob Klintowitz e Joaquim Falcão, entre outros.

    Nas fotografias, 16 canhões de luz iluminam a cúpula da Catedral de Brasília, retratada de ângulos distintos para mostrar a totalidade da visão de Peretti, um desenho que fez nos anos 1980 sobre imensas folhas de papel vegetal.

    Também no livro estão os vitrais de Peretti no Panteão da Pátria e no Memorial JK, com destaque para um de seus projetos mais ousados –o vitral formado por cortes na fachada do Superior Tribunal de Justiça. De dia, parecem um elemento cego, um ornamento na superfície, mas à noite, com as luzes acesas, o desenho parece ganhar vida.

    "Brasília é interessante e diferente", diz Peretti. "Enquanto Paris foi feita em centenas de anos, Brasília é o contrário. Mas acho os arquitetos brasileiros melhores do que os franceses. Talvez seja pelo calor daqui, pela facilidade de não estar abafado por coisas que existem há muitos séculos."

    INFLUÊNCIA NA OBRA DE NIEMEYER

    A luz foi um ponto de discórdia entre Marianne Peretti e Oscar Niemeyer. Ele começou a construir a Catedral Metropolitana de Brasília em 1958 e a inaugurou em 1970, ainda sem a intervenção da artista.

    No princípio, as hastes hoje brancas da obra eram cinzas, de concreto aparente, e as janelas eram grandes dosséis de vidro escuro, que mergulhavam o interior do prédio numa penumbra nada "divina", na opinião da artista.

    "Era um horror aquilo, então disse que ia pintar de branco. Uma mulher da alta sociedade de Brasília disse que iria embora se eu fizesse isso, e eu mandei ela já ir arrumando as malas", conta.

    "Até o padre, que não gostava daquela arquitetura, eu consegui trocar. Mandei uma carta para o arcebispo sugerindo a transferência dele."

    Niemeyer foi mais difícil de convencer. O arquiteto primeiro concordou em pintar as hastes de branco só por dentro, depois cedeu e acabou mandando pintar outros prédios de Brasília.

    Também se rendera ao charme de Peretti, que descrevia como "bonita, alegre", autora de um "desenho magnífico, livre, solto, coberto de coragem e ousadia".

    Mesmo o urbanista da capital brasileira, Lucio Costa, também avesso à tal ousadia de Marianne Peretti, acabou reconhecendo que só "uma alma como a dela" seria capaz de resolver o "problema difícil" da luz ali.

    MARIANNE PERETTI
    AUTOR: TACTIANA BRAGA, LAURINDO PONTES, YVES LO-PINTO SERRA (ORG.)
    EDITORA: B52, EDIÇÕES SESC
    QUANTO: R$ 220 (350 PÁGS.)

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024