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    CRÍTICA

    Maior crítico português, Eduardo Lourenço analisa o Brasil em livro

    JORGE HENRIQUE BASTOS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    19/09/2015 02h37

    Num texto publicado no livro "O Albatroz e o Chinês" (2004), Antonio Candido rememorou os intelectuais portugueses que vieram para o Brasil, fugindo da ditadura de Antonio Salazar (1889-1970).

    "Ora, os portugueses, que vieram quase todos por motivos políticos a partir de 1940 a 1974, formam uma não planejada missão portuguesa, que trouxe contribuições culturais positivas e renovadoras, devidas a homens de pensamento e sensibilidade que representavam as nossas raízes históricas (...)." E elencou autores como Fidelino de Figueiredo, Jaime Cortesão, Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro, Fernando Lemos.

    O ensaísta Eduardo Lourenço participou desta diáspora, mas viveu na Bahia, em 1958/59, lecionando na Faculdade de Filosofia de Salvador.

    Entre a magia do candomblé baiano e as aulas sobre a fenomenologia de Hegel, Lourenço se relacionou com Jorge Amado, Pierre Verger e Glauber Rocha. Tais temas estão no livro recém lançado em Lisboa, "Do Brasil: Fascínio e Miragem", em que o autor de "O Labirinto da Saudade" se revela um intérprete atento da cultura brasileira.

    Divulgação
    ORG XMIT: 372701_0.tif 1959O cientista social Agostinho da Silva e ensaista Eduardo Lourenço em praia na Bahia, em 1959. (Divulgação)
    O cientista social Agostinho da Silva e o ensaísta Eduardo Lourenço em praia na Bahia, em 1959

    Nascido na Beira Interior, região centro-norte de Portugal, em 1923, galardoado com o Prêmio Camões, em 1996, Lourenço é um ensaísta longevo cuja obra interpreta os labirintos da cultura lusitana. Os seus ensaios se disseminam entre a literatura, a história, a filosofia e a política. Não surpreende que o Brasil fosse alvo do seu interesse. Faltava reunir o amálgama de textos escritos ao longo do tempo. É o que esta edição vem colmatar.

    VATICÍNIO LATENTE

    O texto mais antigo remonta a 1945. É uma crítica bem articulada sobre os livros "Terras do Sem-Fim", de Jorge Amado, e "Fogo Morto", de José Lins do Rego –ambos de 1943–, e é contundente: "Enquanto a realidade social do Brasil não fizer desaparecer essa massa de semi-seres, os seus romancistas nada mais farão do que continuar a recriá-los na sua animalidade e inconsistência, misturados com pedaços de sonhos que os humanizam".

    Atualizando tais ilações e trocando os nomes por autores como Ferréz ou Paulo Lins, e a ressonância periférica das suas obras que incidem sobre uma realidade violentamente atual, o vaticínio de Lourenço permanece latente.

    O autor não alinha no discurso simplório, típico das hipérboles de confraria. Ele argumenta contra as facilidades, despontando aí a argúcia implacável. Foi com essa veemência que escreveu sobre Gilberto Freyre ("A propósito de Frades", ed. Universidade da Bahia), nos anos 1960, revelando sua ortodoxia.

    "Como em outros estudos, também neste se podem revelar (...) hábito inédito de sociólogo, notas de leitura curiosas, referências históricas ou observações anedóticas não despidas de interesse", diz o texto, e segue:

    "Mas tudo isso produto de bibliografismo avulso e acidental, não altera o caráter de puzzle, típico dos escritos de Gilberto (...). É tarefa impossível e vã seguir os meandros de uma para-sociologia arbitrária, plena de contradições gritantes, habituada a servir-se de dados ou exemplos fora dos contextos próprios, pondo no mesmo plano fatos separados por séculos, com uma liberdade toda tropical, mas desencorajante para a melhor boa vontade do mundo".

    Anos depois, Lourenço recordou isso, e alertou para as relações de Freyre com o salazarismo: "Naquela altura não sabia que ele era de formação protestante e pensei que era católico (...). Ele escreveu uns artigos desancando uns franciscanos que estavam dentro dessa igreja, comportando-se já como sendo a igreja dos pobres. (...) O regime português serviu-se de Gilberto Freyre como caução, principalmente para esta coisa do luso-tropicalismo, como caução ideológica da cruzada africana. E isso não é bagatela, a prova é que ele foi o único escritor que Salazar realmente recebeu" (entrevista a Rui Moreira Leite, Colóquio-Letras, 2009).

    Os textos recuperados – situados entre 1945 e 2012, alguns deles inéditos– tratam de vários temas. Lourenço faz a análise do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), visto na primeira retrospectiva mundial do Cinema Novo, realizada em Nice, em 1967; critica José Honório Rodrigues, ou reflete sobre os 500 anos do país e declara a admiração por Machado de Assis e Euclides da Cunha.

    Todas as nações gostam de se "psicanalisar". Se no Brasil tivemos Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Câmara Cascudo, Florestan Fernandes; em Portugal houve figuras análogas como Antonio José Saraiva, Agostinho da Silva ou José Gil.

    Eduardo Lourenço faz parte dessa plêiade que refletiu sobre a nossa realidade, com toda a sua carga de miséria, beleza e complexidade intrínsecas. Com tal obra, ocupa um lugar de destaque nesta constelação.

    DO BRASIL: FASCÍNIO E MIRAGEM
    AUTOR Eduardo Lourenço
    EDITORA Gradiva
    QUANTO importado; 12 euros (cerca de R$50), 272 págs.

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