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    OPINIÃO

    Nydia Licia possuía a elegância do silêncio

    LÍGIA CORTEZ
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    12/12/2015 11h59

    O teatro brasileiro sempre contou com a presença decisiva de mulheres, atuando como donas de companhias, atrizes e estrelas. No começo do século, e sobretudo no teatro do pós-guerra, foram muitas as mulheres que construíram o que hoje chamamos de moderno teatro brasileiro. Nos últimos dias, perdemos duas dessas grandes atrizes, que me pareciam eternas: Marília Pêra e Nydia Licia.

    Nydia foi uma das mais impressionantes e importantes personalidades de nosso teatro. Vinda de Triste, de origem judaica italiana, fugindo do fascismo com sua família, chegou com 13 anos a São Paulo, almejando ser cantora de ópera. A família era altamente integrada na cultura e no ambiente artístico italiano. Levada pela sua mãe, que era crítica musical e musicista, aos 13 já tinha assistido mais de 60 óperas.

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Atriz Nydia Licia em sua residência em São Paulo
    Atriz Nydia Licia em sua residência em São Paulo

    Em São Paulo, teve seu primeiro trabalho com Pietro Maria Bardi, inaugurando o Museu de Arte de São Paulo. Deixando de lado o sonho de cantora de ópera, entrou para o teatro, através do convite de Alfredo Mesquita para interpretar, no Grupo de Teatro Experimental, a Laura de "À Margem da Vida", um dos mais icônicos personagens femininos na dramaturgia moderna.

    No melhor sentido da palavra amador, este grupo foi de extrema importância para o teatro brasileiro e para a formação do legendário TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, no qual ela passaria a atuar, junto com Cacilda Becker, Cleyde Yáconis, Tonia Carreiro e o grande Sergio Cardoso, com quem foi casada e teve sua filha, a médica Sylvia Leão.

    Uma das grandes contribuições que os italianos trouxeram para a cultura brasileira, sobretudo paulistana, Nydia foi também uma refinada atriz, amava o teatro e a palavra falada.

    Foi uma artista rara e uma mulher à frente de seu tempo. Possuía a elegância do silêncio. Sem alarde, Nydia fez muito. Atuou em grandes papéis, produziu peças, construiu e abriu teatros, trouxe importantes diretores europeus para dirigirem aqui, traduziu e foi a primeira a encenar Dario Fo no Brasil. Era profunda conhecedora da dramaturgia italiana, foi fundadora e também diretora da TV Cultura na sua melhor época produtiva, também da TV Educativa no Rio de Janeiro.

    Durante anos, fomentou e difundiu o teatro infantil em São Paulo e escreveu livros: sua própria biografia e depois a biografia de tantos atores, inclusive de meus pais, Célia Helena e Raul Cortez, em um livro que ganhou o prêmio Jabuti em 2008. Deu aulas de voz, canto e interpretação. Foi bem falada, mal falada, amada, admirada. O que falta mesmo é ser mais comemorada.

    Que sorte tivemos pelo privilégio de termos tido Nydia. Deve-se festejar a menina que um dia desembarcou em Santos carregando um vaso pesadíssimo de hortênsias, que sua mãe a obrigara a cuidar durante toda a longa viagem de navio. Nydia odiava hortênsias.

    Sempre foi uma mulher dona dos próprios atos e escolhas. Uma mulher independente, de espinha dorsal reta (ai, como achava lindo esse jeito), que nunca precisou se fazer de fraca nem de forte. Uma mulher íntegra. Que me ensinou muito. Alguns conselhos guardo pra mim, quem sabe um dia faço um livro com eles. Compartilho um recente sobre rugas: depois de uma certa idade, o melhor é sorrir sempre. Nada mais a fazer. Acho que ela nunca fez plástica. Olhos azul safira, linda senhora, aceitou os anos no seu rosto e corpo. No hospital, um dia com um chale azul que deixava seus olhos ainda mais bonitos, conversamos sobre seus projetos: um novo livro, um projeto de filme com o diretor de cinema Ugo Giorgetti, o único para quem ela ainda atuava, e ainda as aulas que ela ministrava na escola Célia Helena há mais de 20 anos. Era excelente pedagoga e amava como ninguém seus alunos.

    Em seu livro "Ninguém se Livra de Seus Fantasmas", Nydia conta suas últimas palavras, quando deixou o palco como atriz, no teatro Anchieta, em 69, um texto de Guimarães Rosa:

    "Liberdade ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, de encoberto, e que ninguém nos ensina: o beco para a liberdade se fazer."

    LÍGIA CORTEZ, atriz, é diretora do Centro de Artes e Educação Célia Helena

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