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    Composição clássica de Gershwin pode ter sido tocada errada por 70 anos

    MICHAEL COOPER
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    02/03/2016 18h38

    AFP
    O compositor norte-americano George Gershwin
    O compositor norte-americano George Gershwin

    Ela é uma das obras mais famosas de música americana —mas é possível que as orquestras estejam tocando errado um de seus efeitos mais conhecidos, e há 70 anos.

    A obra é o poema sinfônico "Um Americano em Paris", de George Gershwin, e o efeito em questão envolve um conjunto de instrumentos que não eram padronizados quando a obra foi composta, em 1928: buzinas de táxi francesas, tocadas em vários trechos, já que a música, que tem um clima que lembra o jazz, evoca a paisagem sonora urbana que o turista ianque encontra quando passeia pela Cidade Luz.

    A dúvida é que notas essas buzinas de táxi deveriam tocar. Numa espécie de bomba musicológica, uma edição crítica das obras de George e Ira Gershwin que está sendo preparada na Universidade do Michigan vai argumentar que as notas hoje padronizadas tocadas pelas buzinas (ouvidas no musical clássico de 1951 com Gene Kelly, em salas de concertos de todo o mundo e oito vezes por semana na Broadway na aclamada adaptação teatral de "Um Americano em Paris" dirigida por Christopher Wheeldon) não são o que Gershwin pretendia.

    A descoberta promete dividir músicos e pode levar fabricantes, vendedores e locadores de instrumentos -que hoje oferecem conjuntos de buzinas de táxi afinadas especificamente para "Um Americano em Paris" —a pensar em investir em novos conjuntos de buzinas afinadas para as novas notas. A mudança conferiria uma diferença sutil, mas distinta, a uma música que já virou um clássico e que foi influenciada por alguns dos maiores compositores de sua época. "Um Americano em Paris" seguiu o caminho desbravado por outras obras que empregam chamados instrumentos "encontrados" ("trouvés"), incluindo o balé de 1917 "Parade", de Erik Satie, que usa uma máquina de escrever e disparos de arma, e "Flivver Ten Million" (1927), de Frederick Converse, uma ode ao automóvel Ford, em que são tocadas buzinas de carro.

    "Tenho a impressão de que os percussionistas vão reagir mal a esta conclusão toda", falou Mark Clague, editor chefe da edição crítica, que assistiu a algumas apresentações experimentais da partitura revista feitas pela Filarmônica de Reno no mês passado.

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    A ambiguidade se deve ao modo como as partes das buzinas de táxi estão anotadas na partitura manuscrita original de Gershwin. Para explicar as coisas em termos de Gershwin, "we got rhythm": a partitura mostra que as buzinas tocam conjuntos de notas de oitava acentuadas. Mas quando se trata das notas, as coisas não ficam claras. A partitura de Gershwin indica as quatro buzinas de táxi com um "A", um "B", um "C" e um "D", cada letra dentro de um círculo. Pelo menos desde 1945, quando Arturo Toscanini usou essas notas ao gravar o poema sinfônico com a NBC Symphony Orchestra, essas letras dentro de círculos são interpretadas como indicativos da nota que cada buzina deve tocar -A (lá), B (si), C (dó) e D (ré) na escala.

    Mas a nova edição crítica argumenta que as letras anotadas por Gershwin dentro de círculos não passavam de indicativos especificando quais buzinas deveriam tocar, e não quais notas cada uma deveria emitir. Clague, que é professor adjunto de musicologia na Universidade do Michigan, mencionou que, na viagem que fez a Paris em 1928, Gershwin comprou buzinas de táxi que escolheu a dedo e que amigos e colegas do compositor recordaram que ele deu orientações específicas sobre as notas que as buzinas tocariam. Clague também apontou para as evidências de uma gravação feita pela gravadora Victor de "Um Americano em Paris" em 1929, sob a supervisão de Gershwin e, presume-se, usando as buzinas de táxi adquiridas por ele. As buzinas nessa gravação tocam um conjunto de notas mais dissonante: lá bemol, si bemol, um ré muito mais alto e um lá mais baixo.

    Os instrumentos originais de Gershwin parecem ter sido perdidos. Michael Strunsky, 81 anos, sobrinho e herdeiro de Ira Gershwin, disse em entrevista telefônica que seu pai tocou as buzinas de táxi quando George Gershwin primeiro deu um recital informal do poema sinfônico para sua família, em 1928, depois de voltar da Europa de navio.

    "Uma vez fui procurar aquelas buzinas", disse Strunsky. "Mas no meio de tantas mudanças de casa, e disso e daquilo, elas sumiram."

    Russ Knutson, dono da Chicago Percussion Rentals, no Illinois, que aluga buzinas afinadas para "Um Americano em Paris" e já as tocou ocasionalmente, disse em entrevista que, em sua opinião, as notas hoje aceitas como corretas tocadas pelas buzinas na obra, lá, si, dó e ré, "se encaixam perfeitamente na música".

    "O país todo e o mundo todo se acostumou a tocar com aquelas quatro notas", ele disse em entrevista telefônica. "Todas as gravações já ouvidas são com essas quatro notas."

    Mas Trey Wyatt, percussionista da San Francisco Symphony que estima já ter tocado as partes das buzinas 40 ou 50 vezes e que aluga vários conjuntos de buzinas através de sua própria empresa, a California Percussion Rental, achou a nova interpretação intrigante.

    "Se esta nova afinação for aceita, de repente terei que comprar outros cinco conjuntos destas buzinas", ele disse.

    Rob Fisher, o adaptador musical e supervisor da nova produção de "Um Americano em Paris" em cartaz na Broadway no momento, disse que concorda que os indicativos de A, B, C e D são nomes, e não notas, mas que o musical acabou usando as buzinas de praxe.

    Mas ele questionou se as notas usadas na gravação da Victor devem ser aceitas como as corretas. "Não posso tentar adivinhar o que se passava na cabeça de alguém", ee disse. "Será que aquelas quatro buzinas foram as que deixaram Gershwin mais feliz naquele dia em que ele foi comprar buzinas? Só acho que, se ele quisesse que as buzinas tocassem notas específicas, ele saberia escrever suas intenções —ele era muito bom nisso."

    Mark Clague disse que entre a gravação de 1929 que Gershwin supervisionou e a gravação de 1945 regida por Toscanini, que parece ter ajudado a definir uma nova tradição, há uma variação grande no modo como as buzinas de táxi são tocadas. Mas, explicou, sua análise musical confirma a ideia de que as notas usadas na gravação de 1929 da Victor funcionam melhor. "George estava pensando harmônica e melodicamente com as buzinas de táxi. Não é apenas um efeito sonoro."

    Ele acrescentou, porém, que teria havido uma maneira fácil de evitar a ambiguidade toda. "Acho que Gershwin teria poupado muito trabalho a todo mundo se tivesse simplesmente enumerado as buzinas '1', '2', '3' e '4', em vez de 'A', 'B', 'C' e 'D'."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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