Um dos principais nomes do romance português, Raul Brandão é autor do clássico "Húmus" (1917). Seus livros trazem questões formais importantes para a literatura do século 20 –entre elas, a descontinuidade de tempo e espaço na narrativa.
Acontece o mesmo com "O Pobre de Pedir", romance póstumo editado em 1931 e agora publicado no Brasil pela primeira vez.
Nele, encontramos um narrador que se põe a vasculhar a si mesmo ao se deparar com o outro. E, nesse caso, o outro é composto por aquele que dá título ao livro.
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O escritor português Raul Brandão, morto em 1930 |
Trata-se de um monólogo sombrio em que o fio narrativo é sustentando menos pela intriga do que pelo mergulho violento no mundo mental do protagonista. Em certo instante, ele mesmo diz: "Eu não tenho remorsos; o meu desespero é pior: é de ter errado a vida".
INTROSPECÇÃO RADICAL
A narrativa centra-se nesse homem e em seus conflitos em relação à esposa, Sílvia, e à filha, Stela. Além delas, há aqueles chamados de "labrostes", camponeses pobres que perturbam a consciência de classe do protagonista e que fazem eclodir a introspecção radical que é a marca desse romance.
Existe também um fantasma que funciona como voz, espécie de duplo responsável por fazer o narrador não saber mais quem é ele: "se é o homem interior, se é o homem exterior".
Entre remorsos e autocomiserações, o livro percorre os pensamentos de alguém separado de si mesmo e que não espera mais nada a não ser rir até ficar "nu diante das estrelas".
Entre a sensação do inacabado e o sentimento de delírio, a linguagem do livro é intensa. Muitas vezes, ao fazer uso da desconexão sintática, o fluxo narrativo do romance acaba por expressar bem o tumulto que povoa a cabeça do protagonista e, ao mesmo tempo, a sua exasperada solidão. Tamanho é o sofrimento dele que o ensaísta Gustavo Rubim, autor do posfácio, chega a falar de uma "demolição como caminho para a autobiografia".
De fato, para esse homem nada se salva. "Todas as coisas por que tinha um grande respeito, a honra, a família e até as horas, me parecem ninharias", diz ele. E a história segue crescendo na direção de uma catástrofe familiar desencadeada pelos "ladrões" camponeses, que retornam ao livro para terem outra vez uma participação decisiva.
Esse evento não é ainda o desfecho, e sim um novo momento em que a história se adensa, com o narrador assumindo –cada vez mais– sua dimensão fantasmática. "Eu criei-me personagem fictícia", diz ele, já soterrado não só pela culpa de suas mentiras conjugais, religiosas, mas também pela assustadora e moderna consciência de ser uma personagem da linguagem.
LEONARDO GANDOLFI, poeta e professor de literatura portuguesa na Unifesp, é autor de "Escala Richter" (7Letras).