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    Cidadão do mundo, Tiganá Santana mostra em SP disco em língua africana

    CLAUDIO LEAL
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    16/03/2016 02h10

    Danilo Verpa/Folhapress
    SAO PAULO - SP - 10.03.2016 - Retrato do compositor baiano Tigana na USP. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, ILUSTRADA)
    Retrato do compositor baiano Tiganá na USP

    As cidades se revelam nas madrugadas do compositor baiano Tiganá Santana, 33 anos. Em Toubab Dialaw, ao sul de Dakar, Senegal, onde fez uma residência artística de cinco meses pela Unesco, ele esperava a noite alta para andar sozinho pela praia, observando as luzes distantes da Ilha de Gorée. Não mudará tanto sua personalidade em Estocolmo, Paris ou São Paulo. As escapulidas noturnas amornam as horas de criação.

    Num café em Salvador, a cidade natal, Tiganá afirma que todas as paisagens são atravessadas por seu desejo de ter, no mundo, "apenas um lugar de recolhimento e expressão, com algum caráter de inventividade".

    A temporada africana de 2013/2014 inspirou o álbum duplo "Tempo & Magma", gravado num estúdio de Dacar, e o aproximou dos músicos senegaleses Ndongo Faye, Oumar Sadio, Mousséké e do guineense Al Hassane Camara, que formariam a Sobo Bade Band. Do Mali, agregou Diango Diabaté. Nesse cruzamento, seu violão-tambor (cinco cordas) uniu-se aos instrumentos djembe, ngoni, sabar, cabaça e balafon. A experiência intercultural se completa na linguagem.

    Além do inglês e português, ele compõe nos idiomas africanos kikongo, kimbundu, wolof e mandinka. Aprendeu as línguas no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA (Universidade Federal da Bahia, por onde se formou em filosofia) e se aprofundou como autodidata.

    Tiganá separa o encontro com a África daquilo que poderia ser uma busca por seus ancestrais negros. "Não sou antropólogo, não sou etnólogo, não sou historiador, não sou sociólogo. Eu lido com o que o Ocidente chama de arte. E aí, claro, as coisas são inventadas", defende o compositor, que neste sábado (19) leva o show do último disco ao Sesc Belenzinho.

    Antes da residência, não alimentava ideias românticas do que fosse o continente africano. "Fui conhecer um povo de um lugar no mundo habitado por pessoas, culturas, linguagens, problemas, inclusões e exclusões. Sinto que o Senegal me permitiu redimensionar a minha terra natal".

    "Eu não sabia o que ia acontecer quando fui convidando as pessoas. As texturas foram se desenhando. Deu certo. É um diálogo interessante: aparece o violão-tambor como mais um entre os instrumentos", comenta. O violão-tambor, por ele criado, favorece os sons graves. "No 'Tempo & Magma' há o diálogo entre alguma coisa que é uma expressão pessoal com alteridades. O disco um tem essa característica dos silêncios –e se chama Interior. E tem o disco Anterior, que é posterior. A gente não sabe se vem primeiro a interioridade ou a anterioridade. Você tem acesso ao que veio antes através da interioridade."

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    Depois do CD de estreia, "Maçalê" (2010), cujo significado é "o poder do orixá em mim", não tardou a iniciar uma carreira internacional. O segundo, "The Invention of Colour" (2012), foi lançado na Suécia pelo selo Ajabu!, sob a produção de Sebastian Notini e Andreas Unge, dupla com a qual voltou a trabalhar em "Tempo & Magma".

    Este semestre, o baiano realizará uma turnê de 11 concertos na França, Suíça, Dinamarca e Cabo Verde. Em 2015, o grupo americano Beirut o convidou a integrar os concertos europeus do álbum recém-lançado "No No No", em reconhecimento às influências de "The Invention of Colour".

    Batizado com um nome originário do Mali e talhado pela família para ingressar no Itamaraty, Tiganá desistiu da aspiração à diplomacia e aprofundou-se nos estudos musicais, a princípio com um violão presenteado pela mãe em seu aniversário de 11 anos. Na lista de mestres, alinha Ali Farka Touré, Dorival Caymmi, Tom Jobim e João Gilberto. O poeta João Cabral de Melo Neto frequenta suas conversas como exemplo de engenho e recato.

    O percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, morto este mês, comparava sua música a "um perfume de essência rítmica e fragrância apurada". Nos últimos anos, esse perfume não exala o aroma da canção tradicional. Pouco a pouco, achegou-se a uma musicalidade repleta de silêncios.

    "O caminho da canção não estava atendendo ao que eu queria manifestar como linguagem. Preferi seguir por uma certa trilha de frequências e entrar na textualidade de uma maneira não-literal", expõe. A letra de "Mama Kalunga" traduz uma parte de seus anseios na arte: "Eis-me aqui,/ serei eu a voz que nunca seja,/ já que a voz pode remeter ao que/não há".

    "Mama Kalunga" nomeia o disco da cantora baiana Virgínia Rodrigues, produzida por Tiganá e Sebastian Notini depois de sete anos de ausência fonográfica. "Eu acreditava que não surgiria nada que prestasse na música brasileira. E aí Tiganá veio me mostrar que estava errada", diz Virgínia.

    Em kikongo, explica Tiganá, Kalunga é "a força máxima que vem de si mesma, a força vital maior, que inclui a morte. E Mama confere feminilidade a essa força fértil". Em kimbundu, Kalunga possui outro sentido: mar.

    A cantora definiu em conjunto o conceito do álbum. Sozinha, escolheu cinco músicas do amigo, como "Mon'Ami" e "Dembawa (10 de Agosto)". O repertório congrega Abigail Moura, Ederaldo Gentil, Geraldo Filme, Gilson Nascimento, Moacir Santos, Nei Lopes, Nizaldo Costa, Paulinho da Viola e Roberto Mendes.

    O próximo lançamento do artista será um disco dividido com a cantora paulista Fabiana Cozza. "Quando o conheci, achei que estava diante de um monge do candomblé. Ele tem essa postura de reverência à vida, às vidas", comenta Fabiana, que diz ter chorado ao ouvi-lo pela primeira vez. "A gente se trata de irmão. Sempre discutimos a questão muito forte do racismo, dos preconceitos".

    A relação conflituosa entre branco e negro na sociedade brasileira nunca abandonou as preocupações do músico. No disco de Virgínia, o samba "Vá cuidar de sua vida", de Geraldo Filme, aborda o jogo em que se rejeita e se assimila: "Hoje o nego vai à missa/ E chega sempre primeiro/ O branco vai pra Macumba/ E já é Babá de Terreiro". Tiganá esclarece, sem volteios, seu convívio com o racismo: "Na minha atividade artística, não. Como cidadão, sim. Eu sou negro. E aí, ponto. Neste país é isso. Fatalmente. Para Virgínia, ainda mais, porque é mulher. É um país machista danado".

    Hoje baseado em São Paulo, onde faz doutorado em letras na USP, ele se equilibra entre os shows, as viagens internacionais e o estudo acadêmico, sobre a tradução de sentenças em linguagem proverbial, dialogando com o pensamento bantu-kongo a partir do congolês Bunseki Fu-Kiau, autor do ensaio "African Cosmology of the bantu-kongo: Principles of Life and Living".

    NO TERREIRO

    No candomblé, integra o terreiro Tumbenci, em Lauro de Freitas (BA). Os orixás e os mitos da religião passam por sua obra, numa abordagem que o distancia dos compositores da axé music, gênero surgido nos anos 80, em Salvador. "Não me agrada", critica Tiganá, referindo-se ao proselitismo com os orixás e ao uso de cânticos de rituais "não só gravados à guisa de registro, mas espetacularizados".

    Mesmo no carnaval, Tiganá identifica exceções: "Quando os Filhos de Gandhy, nos anos 40 e 50, e os outros afoxés egressos de terreiros de candomblé cantavam nas ruas temas sagrados, aquilo era uma realidade completamente diferente do carnaval industrializado do Axé Music, com outras coisas na cabeça, outras intenções, outros mercados".

    "Ele fala do sagrado de inquices e orixás sem devassar as práticas litúrgicas dos terreiros, sem reproduzir os cânticos sagrados. Reconta os mitos por sua capacidade musical e poética, cria canções que viram 'mantras', sem invadir e sem banalizar o sagrado do candomblé, como fazem os artistas carnavalescos da chamada Axé Music", analisa o antropólogo Marlon Marcos, da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), autor do primeiro artigo acadêmico sobre o artista.

    A alma criadora de Tiganá foi infiltrada, em tempos recentes, pela ideia de um trabalho somente como intérprete. "Não sei como realizaria, mas penso nisso como algo possível", admite. Em espetáculos, sua voz grave e sedosa já revisitou canções de Caymmi, Ederaldo Gentil e Gilberto Gil.

    Com várias fontes, línguas e origens, Tiganá Santana dificulta a categorização de seu estilo musical. Ainda mais intrincado, procura extrair silêncios e sonoridades no duelo com o tempo. Recria, não só reencontra, a ancestralidade. Em solidão, elege a morte como uma das principais mestras. "O reconhecimento diário da finitude é que pode fazer com que eu delire infinitudes. Essas coisas me ajudam. Como eu não uso drogas...", sorri, à noite, apertando os olhos acalmados. "Essas coisas me ajudam a passar por aqui. Criar essas infinitudes, esses delírios, esses não-lugares nos lugares, nas coisas, nos instantes. Viver pra mim pode ser isso".

    TEMPO & MAGMA
    QUANDO sábado (19), às 21h
    ONDE Sesc Belenzinho, r. Padre Adelino, 1.000, tel. (11) 2076-9700
    QUANTO de R$ 7,50 a R$ 25

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