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    crítica

    Em 'Outros Cantos', Maria Valéria Rezende ressoa fala nordestina

    JULIANA CUNHA
    DE SÃO PAULO

    30/04/2016 02h42

    Tem uma frase famosa geralmente atribuída a Tolstói que diz que toda literatura revolve entre dois enredos básicos: um aventureiro se lança em uma jornada ou um estranho chega à cidade. Em "Outros Cantos", Maria Valéria Rezende envereda pelos dois caminhos.

    O enredo básico do romance é sobre uma mulher que faz uma viagem de ônibus ao sertão para dar uma palestra em um sindicato de agricultores. No percurso, ela relembra sua primeira ida àquela terra, quando se mudou de São Paulo para o povoado fictício de Olho d'Água com a desculpa de ser professora do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), o programa de educação para adultos do governo militar. Na verdade, era uma militante de esquerda enviada para organizar os trabalhadores, "conscientizar o povo". Seu objetivo era misturar-se, ser como "fermento na massa".

    Maria, a narradora-protagonista, tem um fraco saudosista por aquele primeiro sertão, de 40 anos atrás, e um olhar desgostoso para o atual, repleto de "badulaques de outro mundo", "autistas tecnológicos" e "camisetas com uma besteira qualquer escrita em inglês". Sobra até para para os racks, aqueles móveis baixinhos onde colocamos a televisão. Maria sonha com um sertão puro e sóbrio, livre de racks.

    Eduardo Knapp/Folhapress
    Retrato da escritora Maria Valéria Rezende,73, em hotel no Ibirapuera
    Retrato da escritora Maria Valéria Rezende,73, em hotel no Ibirapuera

    Seguindo o esquema de Tolstói, temos a jovem Maria chegando à Olho d'Água como enredo principal que se desdobra nas histórias que ela mesma conta de suas viagens anteriores, em missões estrangeiras (presumivelmente como freira) no México e na Argélia, e nas histórias de idas e vindas daqueles que deixaram o sertão e depois retornaram.

    PONTO ALTO

    As histórias dos retornados, aliás, são um ponto alto do livro e falam da dificuldade das metrópoles em absorver os diferentes. Os loucos, os inválidos, os velhos, os mais pobres que os pobres, os que não se adaptam, todos eles têm, bem ou mal, um espaço na vida comunitária do sertão, sendo automaticamente marginalizados no convívio urbano.

    Chegando ao povoado, Maria rapidamente se integra ao cotidiano dos tecelões de rede. Sem salário nem função inicial, ela precisa esperar que o vereador que possibilitou sua vinda lhe pague e forneça os materiais para as aulas. Isso, claro, demora muitos meses, período no qual Maria começa a trabalhar no tingimento das redes, tarefa de homem encarada apenas por ela e por Fátima, uma mulher sem tear cujo marido foi tentar a vida em outra cidade.

    Com a ajuda de Fátima, Maria começa a compreender a vida sertaneja, organizada por estações e colheita, regulada por relógios de sol. Aqui, falar do tempo não é conversa fática, é o único tema imponderável e está no centro da vida. Num cotidiano há muito estabelecido, chover ou não chover é o que muda as coisas.

    Inicialmente encantada pela vida ritualizada dos sertanejos, Maria começa a sofrer de ondas de desânimo e sentimentalismo conforme os meses correm. O vereador não dá notícia de vida e seu objetivo militante começa a parecer abstrato. A fonte de escapismo é uma caixinha de joias onde esconde seus tesouros, todos eles relacionados a uma figura meio mítica que surge em diferentes épocas da vida da personagem, com nomes e funções muito distintos, mas o mesmo olhar fixo e postura de autoridade.

    Se no sertão ele atende pelo nome de Antônio e é um vaqueiro respeitado, em São Paulo é Mauro, líder estudantil durante a ditadura. No Rio, um motoqueiro adolescente que atende pelo apelido de Harley. No México, um viajante chamado Miguel, a caminho de Cuba. Em todas as suas aparições, encara a protagonista fixa e silenciosamente e lhe entrega algum tipo de amuleto (os tais tesouros): um bilhete do metrô de Paris, uma estrela de seu chapéu de vaqueiro, um ojo de Dios, um broche da União Estadual dos Estudantes, uma mão de Fatma em metal amarelo, um emblema esmaltado arrancado de uma Harley-Davidson.

    A escrita de Maria Valéria Rezende ressoa uma fala estilizada do sertanejo, mas também os autores que fizeram isso antes dela, como Guimarães Rosa, a quem cita quase que nominalmente em uma cena em que Maria, após adentrar uma vereda que não conhecia bem, vê um marido batendo em sua mulher. Ela interfere na briga e é repreendia pela própria mulher. Quando vai contar o episódio para Fátima, esta também defende o direito do marido espancador.

    É a única cena em que a jovem Maria percebe que o mundo não é maniqueísta como ela imaginava, os pobres bondosos de um lado, o Dono (proprietário de terras irrigadas que explora os tecelões) como única fonte de ruindade. Percebe que "tudo era muito mais misturado", tal qual Riobaldo notava com grande perturbação em "Grande Sertão Veredas".

    Rezende consegue fazer essa referência tão forte a Guimarães com notável economia verbal. São apenas duas palavras que entregam o jogo: vereda e misturado.

    Um sotaque lusitano também se faz presente em supressões do gerúndio e no uso de termos portugueses, como "sabe" no sentido de sabor, não no de saber.

    As coisas não correm como esperado para Maria em Olho d'Água. Seu projeto de iniciar uma célula revolucionária (porém democrática, diz a narradora, "que em um país continental não faremos como em Sierra Maestra") é interrompido pela ditadura. Seu "vaqueiro encantado", símbolo de sonhos difusos, também termina mal. Mas como o mundo é mesmo misturado, é difícil dizer se no fim Maria perdeu ou ganhou.

    O sertão já não tem a beleza simples e livre de influências massificadas que ela valorizava. Os meninos estão com fones e bonés enfiados na cabeça. A música que ouvem já não é a da tradição local, mas uma versão pasteurizada intitulada de "sertanejo". Porém, quando uma mãe abre a marmita para dar de comer aos seus filhos, Maria sente o cheiro da mesma paçoca salgada que vem alimentando aquele povo há gerações e os viajantes que retornam para seus povoados descem do ônibus dizendo que são novos tempos para a região (seriam mesmo? Ou, do jeito que as coisas andam, a migração para o Sudeste logo retoma o antigo fôlego?).

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    Quanto a Maria, no fim das contas, ela está indo palestrar em um sindicato de agricultores, justo o tipo de coisa que ela e seu "vaqueiro encantado" queriam fundar. "Sim, agora o tempo é outro", concorda a narradora no fim do romance, entre o pesar e a satisfação, "cheio de novos riscos, é certo, mas talvez bem mais propício à vida".

    OUTROS CANTOS
    AUTOR: Maria Valéria Rezende
    EDITORA: Alfaguara
    QUANTO: R$ 34,90 (46 págs.)

    Edição impressa

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