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    Convidado da Flip, arquiteto Francesco Careri defende que flanar é ato estético

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    11/06/2016 02h04

    Divulgação
    Desenho do holandês Constant, que inspirou Careri
    Desenho do holandês Constant, que inspirou Careri

    "Quando ando por esses lugares, tenho a sensação de ser um animal selvagem, uma fera ou bicho", diz Francesco Careri. "São lugares vitais, algo místicos, cheios de energia."

    O arquiteto e ensaísta italiano não está falando de uma selva. Tudo aquilo que parece acelerar seus batimentos cardíacos está no centro de Roma, onde nasceu e ainda vive. Mas essa não é a metrópole monumental dos cartões postais –Careri é um entusiasta de fossos, ruínas, assentamentos ilegais, antenas, aquedutos, cisternas, trevos de autoestrada e túneis ferroviários.

    Esse lado B da malha urbana, ou "arquipélago de vazios", nas palavras dele, seria a reserva magnética da potência de uma cidade, espaços de liberdade plena que escapam da vigilância e do controle de arquitetos, planejadores urbanos, burocratas, além da fúria do mercado imobiliário.

    Mas nada disso está nos mapas. Em "Walkscapes", livro que lançou no ano passado e é tema de seu debate em 30 de junho com a arquiteta Lúcia Leitão na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, Careri conta como desbravou esse mundo secreto a pé, "o caminhar como prática estética".

    Nesse sentido, ele segue as pegadas de uma série de artistas, escritores e filósofos que atravessaram o século 20 tentando entender as cidades gastando a sola do sapato –dos dadaístas que descortinaram uma nova Paris na década de 1920 aos minimalistas americanos que fizeram das vias expressas de Nova York um verdadeiro parque de esculturas nos anos 1960.

    Mas foi cinematográfica a caminhada que mais marcou Careri. "Stalker", filme de 1979 do russo Andrei Tarkóvski, clássico cult que se tornou quase uma obsessão entre os amantes de ruínas e vazios urbanos, acabou emprestando o nome ao movimento criado pelo italiano há duas décadas, quando ele passou a liderar pesquisadores em andanças erráticas por Roma.

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    Cena do filme Stalker, de Andrei Tarkovski
    Cena do filme Stalker, de Andrei Tarkovski

    No filme, o tal Stalker faz o mesmo papel, guiando um escritor e um professor ao coração de um lugar estranho e perigoso. A alegoria de Tarkóvski reveste de plasticidade estonteante escombros industriais e canais de esgoto atravessando o que parece ser uma selva tóxica, dando a entender que está na ruína ou nas margens das cidades uma fonte de regeneração de seus tecidos urbanos decadentes.

    Depois de andar por mais de cem cidades no mundo, de Roma a São Paulo, Careri foi no ano passado à Estônia, onde Tarkóvski rodou seu filme, para repisar o mesmo trajeto.

    "Existe ali uma nova ideia de natureza, algo híbrido, contaminado e ao mesmo tempo vivo", diz Careri. "Viver a ruína é a filosofia que me interessa nesse filme. No meu grupo, também seguimos as mesmas regras, que são nunca dar meia volta e saber que quem perde tempo ganha espaço."

    'MACAQUINHOS'

    Em seu livro, Careri revê até a história bíblica de Caim e Abel à luz de sua obsessão pelo caminhar sem rumo. Depois de matar o irmão pastor, Caim, antes o agricultor sedentário, é condenado à errância eterna, o que transformou a vagabundagem numa punição divina.

    Na Paris dos anos 1950, os situacionistas liderados por Guy Debord, também vistos como vagabundos inconsequentes pela sociedade da época, tentaram reverter o jogo no que Careri vê como um resgate de Abel, aquele que ao levar o gado ao pasto acabava construindo um sentido de identidade própria e do lugar.

    Desde então, filósofos e arquitetos andarilhos, entre eles o autor italiano, vêm dando um sentido político, quando não artístico, ao ato de flanar.

    "Há muitas zonas de amnésias urbanas, e pensamos na possibilidade de ligar umas às outras como uma fuga dos projetos de arquitetos e administradores", conta Careri. "Nas nossas caminhadas, interessava descobrir um sistema de continuidade de vazios e zonas informais, onde se vive de um jeito mais espontâneo. Uma rede de vazios se insinua em toda cidade."

    Esses são os lugares das festas clandestinas, zonas de prostituição, acampamentos de ciganos, nômades e sem-teto, além de parques planejados ou acidentais, túneis, viadutos e trilhos em desuso.

    Na visão de Careri, são essas também as plataformas de uma nova visão arquitetônica, aquilo que alguns teóricos já batizaram urbanismo tático, ou seja, a rejeição de fórmulas ainda atreladas ao cânone moderno em favor de uma noção do vazio urbano como pedra fundamental de cidades mais ricas e vivas.

    "Esse é um grande potencial das cidades, que precisam pensar em novos projetos políticos e tomar distância da cultura neoliberal", diz Careri. "Mas só os arquitetos mais jovens e radicais entendem isso, enquanto escolas de arquitetura ainda formam macaquinhos treinados prontos para seguir as ordens de algum nome estrelado. São todos ainda escravos do desejo de virar celebridade."

    Mesmo a crise que afundou o mundo numa recessão econômica na última década não arrefeceu, na opinião de Careri, a onda da arquitetura enquanto espetáculo.

    Ele ataca projetos dos chamados "starchitects", entre eles o espanhol Santiago Calatrava e o italiano Massimiliano Fuksas, como estratégias para "roubar o dinheiro dos cidadãos", dizendo que, mesmo na ressaca da crise, que gerou uma leva de "novos pobres", os nomes mais badalados ainda lucram com projetos espalhafatosos disfarçados de obra social.

    Às vésperas de seu retorno ao Brasil –ele já participou de uma mostra em São Paulo há quatro anos, quando andou por favelas da cidade–, Careri diz estar preocupado com a remoção forçada de populações mais pobres do Rio para as obras dos Jogos Olímpicos.

    "Isso me toca muito", diz Careri. "Na situação política atual isso parece ter se agravado."

    Mesmo com os pés firmes no chão e enraivecido pelo estado atual da arquitetura, Careri não se esquece das âncoras filosóficas por trás de seus passeios e estudos.

    Mais do que a rota mística de Andrei Tarkóvski e seu "Stalker", Careri acredita que a visão futurista do artista holandês Constant, inventor do modelo para a Nova Babilônia, ou uma cidade nômade, é uma chave para o futuro. "Tenho um afeto por ele", diz Careri. "Ele lutou por um imaginário contra o neoliberalismo triunfante."

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