Em meados do século 19, quando Karl Marx (1818-1883) experimentava e observava os acontecimentos fáusticos da metamorfose industrial inglesa, o governo do Reino Unido tinha dimensões liliputianas. Arrecadava e gastava cerca de 10% da produção nacional.
Era uma máquina política singela, voltada a garantir a paz interna e preparar-se para a guerra.
Chegavam do campo a cidades como Manchester e Londres vastos contingentes humanos atraídos pelas fábricas, sobretudo têxteis. Expunham a miséria, a imundície e o desamparo de suas condições de vida e de trabalho.
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Tropas se preparam para o combate em São Petersburgo, no início da revolução Russa, em 1917 |
Debutava na imagética universal o proletariado marxista. A mecânica do capitalismo haveria de engrossar as fileiras desses trabalhadores despossuídos.
Um misterioso anjo da história faria a economia declinar até a estagnação, o que mergulharia o sistema no impasse político. Num golpe violento e prometeico, chamado de revolução, o proletariado tomaria posse do seu próprio destino e inauguraria uma era de justiça e abundância.
Um século depois, quando o sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983) atestava a falência das profecias marxistas, o Estado britânico havia triplicado de tamanho, seguindo a tendência da Europa ocidental e dos Estados Unidos.
Transformara-se numa gigantesca organização a promover a educação, a saúde e a aposentadoria de todos os cidadãos. O proletariado fabril encolhia, em meio à expansão dos serviços urbanos, da burocracia dos governos e dos setores administrativos das empresas.
Estagnação não houve. A renda per capita britânica havia duplicado. A desigualdade salarial se reduzia. Revoluções socialistas passaram longe das nações pioneiras da industrialização.
Na periférica Rússia, onde os bolcheviques haviam aniquilado o czarismo em nome do proletariado, nada indicava a sociedade ideal prometida. Trocou-se uma elite despótica por outra, e o regime tomou o curso dos totalitarismos àquela altura do século 20 bem conhecidos.
Por que, pergunta-se Raymond Aron, apesar da farta evidência dos fatos, os intelectuais do Ocidente rico, em especial os franceses, mantinham-se na sua maioria fiéis à doutrina marxista e submissos à ortodoxia soviética?
A resposta compõe uma das mais lúcidas críticas políticas dos últimos cem anos e está consignada no volume "O Ópio dos Intelectuais", publicado agora no Brasil em nova tradução pelo selo Três Estrelas, do Grupo Folha.
Lançado na França em 1955, o livro sugere já no título a chave do enigma ao retorcer a famosa frase de Marx sobre a religião como "o ópio do povo". O marxismo aliena o intelectual da realidade, entorpece-lhe os sentidos como a droga, porque opera próximo do registro religioso.
Essa religião substituiu o culto divino por uma idolatria da história, a qual haverá de caminhar conforme previu o profeta fundador e de acordo com seus intérpretes contemporâneos na igreja laica de Moscou.
Os mitos basilares dessa coleção de crenças Aron vai expondo e destruindo um a um. A esquerda quer-se portadora da libertação e representante única dos despossuídos, mas basta chegar ao governo para evidenciar sua natureza parcial, de grupo privilegiado em luta pelo poder contra outras facções privilegiadas.
A idealização da revolução como método de emancipação tampouco resiste à lógica e aos fatos. Configura apenas uma forma violenta de substituir uma elite por outra, sem nada prognosticar sobre o futuro de uma sociedade. A prosperidade de nações que mitigaram a violência como meio para a alternância no poder parece bem mais evidente.
Diluído na sociedade moderna, plural em suas preferências, mais rico e protegido a cada geração, o proletariado industrial como portador do futuro da humanidade é outro mito que não para em pé. Nenhum laço necessário o amarra à vanguarda partidária que almeja, em seu nome, tomar o Estado de assalto.
O que dizer da própria história? Ela não se presta a nenhuma filosofia, a nenhum juízo transcendental que lhe aponte um caminho obrigatório, argumenta Aron nas páginas mais percucientes do livro. A crítica atinge ao longe e exibe o coração do marxismo como religião secular.
HEGEL
Como o cristianismo em relação ao judaísmo, o marxismo herda a base de sua teologia salvífica da filosofia do progresso histórico estabelecida pelo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831). Pretende organizar o caos num determinismo rígido, numa sequência necessária de períodos que desaguaria na redenção do ser humano e no reino da fartura material.
Não se espere desses intelectuais convertidos diálogo com a realidade. Eles rejeitam, pelo dogma, o único ensinamento propiciado pela história, que é a indeterminação sobre os resultados da ação dos homens, com a frustração frequente das suas intenções.
O Ópio Dos Intelectuais |
Raymond Aron |
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A consciência dessa verdade fraca e cética acerca da história "ensina o respeito pelo outro, mesmo quando o combatemos", escreve Aron. Já o intelectual possuído pelo espírito da inevitabilidade radiosa da redenção, como um cruzado ateu, "não vê nem quer ver no outro senão um inimigo a ser eliminado".
O ÓPIO DOS INTELECTUAIS
AUTOR Raymond Aron
TRADUÇÃO Jorge Bastos
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 79,90 (352 págs.)