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    Direita transante é interessante, afirma Caetano Veloso

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE NOVA YORK

    12/10/2016 02h00 - Atualizado às 15h01

    Rafael Berezinski/Divulgação
    Caetano Veloso em apresentação em Lisboa em setembro/2016
    Caetano Veloso em apresentação em Lisboa em setembro/2016

    Desde que Caetano Veloso é Caetano Veloso é assim: avesso à "polarização simplificadora", a última tendência dos nossos tempos, ele sinaliza que há mais coisas entre a esquerda e a direita do que sonha nossa vã internet.

    Isso inclui posar com um cartaz de "Fora, Temer" e achar bem-vinda a "direita transante" lançada por Pedro Ferreira em entrevista à "Ilustrada" em 7/10.

    Ali, Pedro desafiou o clichê do "coxinha conservador" ao se dividir entre duas personas: o fundador e líder do Movimento Brasil Livre (MBL) e o funkeiro de batom e laquê Pedro D'Eyrot, do Bonde do Rolê (Caetano, aliás, gravou uma versão de "Babydoll de Nylon" com a banda em 2011: "Baby Don't Deny It").

    Em entrevista à Folha, o músico baiano de 74 anos fala sobre seu show em parceria com Teresa Cristina, que estreia em Nova York nesta quarta (12), a cantora Anitta e o ministro da Cultura, Marcelo Calero, que a princípio lhe pareceu "gentil", mas "não foi feliz" ao criticar um protesto da equipe do filme "Aquarius" contra Michel Temer no Festival de Cannes.

    Única resposta lacônica: por que quis dar a entrevista por e-mail? "Prefiro assim."

    *

    Folha - Você vai cantar em Inhotim (MG), em novembro, com o Liniker, que já se descreveu como "bicha, preta e pobre" e tem um discurso de empoderar minorias. Como acha que essa geração se distingue da sua?
    Caetano Veloso - As gerações se distinguem, queiram ou não. Tenho a ilusão de ter visto Liniker na plateia de um show meu no Circo Voador. Mas isso pode ter sido mesmo só uma ilusão. Fiquei feliz quando pensei que era ele. Acho que desejava que ele me visse.

    Minha geração é, se é que posso dizer assim, mais geracional do que as outras. Quando vi os Stones tocando "Come Together" dos Beatles, nesse festival do Deserto na Califórnia, pensei muito nisso. A idade média dos artistas era de 72 anos (tinha Dylan, The Who, Roger Waters...).

    A da plateia era bem mais baixa. Somando os coroas que foram ver com os quarentões e a moçada, o festival teve muito mais gente (e deu mais dinheiro) do que o superhypado Coachella. Gente de todas as idades queria ver essas lendas dos anos 1960. É fato. Mas não significa necessariamente superioridade artística.

    Na Olimpíada, foi um auê quando anunciaram a abertura com Anitta, Wesley Safadão e Ludmilla, como se o Brasil fosse passar vergonha. No fim, você e Gil cantaram com Anitta. O que acha dessa reação a alguns dos artistas mais escutados atualmente nas rádios brasileiras?
    Anitta e Ludmilla cantaram na abertura. Wesley não cantou? Poderia. Eu fui chamado desde a primeira hora. Me lembro de Daniela Thomas e Andrucha me mostrando o projeto e eu aceitando: eu tinha gostado do que eles me mostravam. Depois fiquei com preguiça de ir ao Maracanã cedo ensaiar, e no dia ter de ficar lá desde de tarde, pedi pra sair. Foi justamente quando eles tinham decidido chamar Anitta (antes eles pensavam em Marisa Monte).

    A imprensa e as redes sociais estavam chatas com Anitta. Diziam que Ivete seria muito mais representativa. Eu adoro axé music mais do que tudo. E Ivete mais do que quase tudo dentro da axé music. Mas ela, Gil e eu já tínhamos feito um especial a Globo. Seria o mesmo trio. E Anitta é da geração mais nova, além de representar um fenômeno mais recente e (agora) mais contestado do que o axé.

    Meus amigos organizadores da cerimônia chegaram a pensar que meu desânimo pudesse se dever à entrada de Anitta. Daí eu disse a eles que, ao contrário, isso até me animava mais a participar do evento. Que, no fim das contas, foi lindão.

    Você já cumprimentou a plateia com um "Fora Temer". A Teresa Cristina também. Importa o artista se posicionar politicamente?
    Teresa é firmemente da turma do "fora Temer". Em Paris, a plateia gritava isso entre uma música e outra. Plateias brasileiras, dentro e fora do Brasil, repetem esse grito. A própria Teresa chegou a pedir à moçada na Madeleine que parasse de gritar e escutasse as canções.

    Eu, quando cheguei, ouvi muito "fora Temer", cantei umas três músicas e, quando decidi dar boa noite, emendei um "fora, Temer" como se fosse um cumprimento, em tom ameno-irônico, ecoando levemente uma resposta de Gregorio Duvivier a um entrevistador.

    Quando eu cantava "Odeio" no show com Gil, a plateia completava com o grito "Cunha!". Depois do impeachment, foi virando "Odeio você, Temer". O artigo de Demétrio Magnoli sobre isso no Globo estava errado. Fez parecer que eu cantava "Odeio" para puxar protestos. E concluiu que apoio e aprovo tudo de Dilma e Lula.

    A canção estava lá um ano antes dos gritos surgirem. E eu nunca fui petista nem lulista nem dilmista. Na abertura da Olimpíada, Paulinha Lavigne, que desenvolveu uma repulsa instintiva ao processo de impeachment, me deu, meio rindo porque sabia que nos Jogos não eram admitidas manifestações políticas e que, mesmo que eu desobedecesse, as câmeras nunca chegariam perto para mostrar o cartaz, tirou uma foto minha segurando ele e pediu permissão para postar. Dei. Acontece que a destituição de Dilma pareceu um golpe paraguaio em câmera lenta.

    Do editorial do "New York Times" ao artigo de Pompeu de Toledo na "Veja", onde quer que cabeças comecem a pensar, vê-se que o processo de impeachment, por mais que o governo Dilma fosse desastroso (sem falar em sua horrenda campanha contra Marina), foi tocado por gente que estava sob acusações que não a atingiam; que o Brasil, tendo peso muito maior do que o Paraguai, abre assim um precedente que cria insegurança político-jurídica na América Latina (o Macri, por exemplo, se sente mais fraco diante dos "petistas" de lá); avaliza e incentiva a histeria moralista que justifica os artigos ranzinzas de Jânio de Freitas contra a Lava-Jato; e nos retarda o amadurecimento.

    Um dos membros do Bonde do Rolê revelou na semana passada ser cofundador do Movimento Brasil Livre. O Pedro Ferreira, que define sua orientação sexual como "bi de biscate", fala em "direita transante" e da necessidade de abandonar a imagem do conservador coxinha. A polarização política está chegando às artes?
    Já chegou há muito tempo. Tivemos Dom e Ravel, Lobão, Roger [do Ultraje a Rigor]... contra Chico [Buarque], Wagner Moura e muitos de nós. Pena eu não ter lido essa matéria que fala do cara do Bonde do Rolê. Veria o contexto.

    Isso de gay conservador é muito mais frequente do que se imagina. A direita, pelo menos a direita liberal, sempre atraiu os gays. Quando eu era moço, a homossexualidade era tacitamente tida como um aspecto da decadência burguesa. Alguns conhecidos meus na Bahia eram veados e comunistas.

    Mas antes de 1968 isso era um problema para eles. A desaprovação nem sempre era apenas tácita. Oswald de Andrade, por exemplo, vê os veados como degenerados. Como algo que contrasta com a perfeição moral do proletário, que está fadado a salvar o mundo. A direita transante de Pedro é interessante e enriquece esse ambiente de polarização simplificadora.

    O Chico foi xingado em dezembro por grupos anti-Dilma. Esse tipo de coisa te assusta? Já lhe aconteceu algo similar?
    Me dizem que às vezes me xingam nas redes sociais. Mas eu nunca leio essas redes, então não guardo muito na memória. Não penso muito nisso.

    Conheceu o ministro da Cultura, Marcelo Calero?
    Conheci e o achei gentil, educado e informado. Na época diziam que era errado dialogar com representantes de um governo ilegítimo. Mas nós mesmos, os artistas, tínhamos pedido a volta do Ministério da Cultura. A conversa pareceu boa. Mas logo veio o clima que levou ao desmonte do grupo que tocava a Diretoria de Direitos Intelectuais. E a reação de Calero ao protesto do elenco de "Aquarius" não foi feliz.

    E Teresa Cristina, o que lembra do dia em que a conheceu?
    Lembro bem de quando parei para ouvir Teresa: quando ela gravou o CD duplo só com sambas de Paulnho da Viola. Achei tudo correto e digno mas um tanto fosco, como se ela apenas cumprisse a tarefa de registrar a obra de Paulinho, sem mostrar um estilo ou sentimento pessoal de cantora. Um dia ouvi Teresa cantando "Gema", canção que escrevi para Bethânia.

    Eu estava mostrando semanalmente num teatro do Rio (e diariamente na internet) a feitura do repertório do disco "Zii e Zie". Convidava um artista por semana para se unir a mim e à banda Cê. Chamei Teresa para cantar "Gema". Em geral, eu pedia que o convidado sugerisse mais um par de canções para apresentar. Teresa sabia todas as minhas músicas. Inclusive as muito longas cujas letras eu não lembrava. Conversamos muito sobre isso. E descobri que ela sabia tudo de Roberto Carlos, da canção brasileira tradicional (além do samba), dos standards americanos, do rock do Police, dos Beatles ou do Who, mas também muito, mas muito do heavy metal.

    Agora, quando o show com as músicas de Cartola ia para teatros maiores, tive uma conversa com ela sobre o estilo demasiadamente neutro de suas interpretações. Disse que ela viesse para mais perto do próprio canto, que trouxesse seus sentimentos e personagens da música que a encantaram, de grandes estrelas a pessoas que ela ouviu na família ou na vizinhança. Talvez outra cantora se ressentisse desses comentários. Teresa mostrou um interesse de quem está vendo um caminho de libertação. E muita inteligência. Foi uma conversa só –e até curta. Mas no show ela exibia o que tinha entendido.

    E surpreendia. Essa Teresa mais nuançada e entregue, acompanhada pela sofisticação enraizada do violão de Carlinhos, fez desse show a joia especial que é. E chamou a atenção do presidente da Nonesuch, que não é um executivo contratado para gerir, mas um conhecedor e amante da música que quis dedicar-se a trabalhar profissionalmente com aquilo que ama.

    Gal Costa, Marisa Monte, Ney Matogrosso... Tantos já cantaram Cartola. O que em Teresa o impressionou?
    Teresa é uma cantora emblemática da noite da Lapa. É uma princesa daquilo que eu chamo de "reserva indígena do samba carioca". O show só com sambas de Cartola surgiu por causa de um evento no Gabinete Português de Leitura. Era uma coisa para acontecer uma vez só. Mas o formato Teresa+Carlinhos Sete Cordas se mostrou especial.

    Paulinha Lavigne quis fazer num palco maior e gravar em CD e DVD. O prestigioso Selo americano Nonesuch, que lança todos os meus discos nos Estados Unidos desde os anos 80, ouviu o resultado e decidiu lançar mundialmente. Como Bob Hurwitz, o presidente da Nonesuch, tem o sonho de ter todo o meu repertório gravado por mim só com voz e violão (como vem fazendo com Randy Newman), decidimos fazer um show em que eu apresento Teresa e canto coisas minhas em formato solo. Os convites de Seul, Osaka e Tóquio vieram porque ia haver essas apresentações americanas (além de Nova York, fazemos Chicago e Miami).

    E o Cartola, você conheceu?
    Quando fui pro Rio com Bethânia para que ela fizesse o Opinião, o Zicartola estava no auge. Fui muitas vezes lá. Ouvi Cartola cantar de perto. Mas só falei com ele poucas vezes e muito brevemente.

    É verdade que você nunca foi ao Instituto Inhotim? Acredita que o show lá vai ser diferente dos outros?
    Nunca. Faço sempre planos mas sempre alguma coisa me impede. É sempre assim: passei dois anos e meio na Inglaterra planejando ir a Dublin. Nunca fui. Nunca vou a lugar nenhum sem que seja para trabalhar.

    Mas sempre aproveitei as idas a trabalho para ver os lugares. Quando eu era jovem, o show era só um rápido detalhe da viagem. Esticadas noturnas, museus, pessoas locais, bairros típicos é o que mais importava. Hoje preciso me resguardar mais para me concentrar no show. Tenho certeza de que o de Inhotim vai ser muito diferente. E vou separar tempo para ver o que lá tem para ser visto.

    Por que você só dá entrevista por e-mail?
    Prefiro assim.

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    Divulgação
    Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas no mesmo show
    Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas no mesmo show

    CHEGA EM NOVEMBRO

    Em janeiro de 2016, Caetano Veloso assistiu ao show Teresa Canta Cartola e ficou empolgado. Resolveu dar uma força para a amiga –ambos são representados pelo mesmo escritório.

    Daí nasceu Caetano Apresenta Teresa, uma turnê na qual Teresa canta Cartola, Caetano canta Caetano e, ao final, os dois juntos cantam mais Caetano. Carlinhos Sete Cordas (que toca violão de sete cordas) acompanha a cantoria de Teresa.

    A turnê começou em Paris e Lisboa em setembro, Coreia e Japão em outubro e agora chega aos EUA. Haverá shows em Nova York (12 e 13), Chicago (16) e Fort Lauderdale (18).

    Em novembro, eles dão três shows no Brasil.

    CAETANO APRESENTA TERESA
    QUANDO 11 e 12/11 no Rio e 17/11 em SP, sempre às 22h
    ONDE Rio: Vivo Rio, av. Infante Dom Henrique, 85, Flamengo; SP: Espaço das Américas, r. Tagipuru, 795, Barra Funda
    QUANTO Rio: de R$ 80 a R$ 220, em www.tudus.com.br; SP: de R$ 180 a R$ 280, em www.ticket360.com.br
    CLASSIFICAÇÃO Rio: menor só acompanhado; SP: 12 anos

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