"Não é sobre você!", diz a fantástica Tilda Swinton no papel da misteriosa Anciã no filme "Doutor Estranho".
A maga aconselhava o doutor Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), em dúvida se voltava à sua vida anterior como um neurocirurgião superfamoso e supernarcisista, ou se usava seus novos poderes místicos para salvar o mundo.
A vida havia lhe pregado uma surpresa trágica quando um acidente destruiu suas mãos e sua habilidade de operar. Desesperado, encontra uma seita no Nepal, liderada pela Anciã. Às vezes, a vida faz isso com a gente, reorientando nosso caminho de forma inesperada.
O que um narcisista faz numa situação dessas? Primeiro, tenta restaurar seu status. Infelizmente, e aqui vem a primeira lição, não podemos controlar o tempo.
Os poderes da natureza estão muito além de nosso controle. Suas leis precisam ser respeitadas. Só isso deveria inspirar uma enorme dose de humildade, nós que nos achamos tão poderosos.
Uma exceção razoável se dá quando a ameaça que temos a enfrentar tem enorme potencial destruidor e, dado que estamos num universo Marvel, temos poderes místicos de um deus.
Dada essa situação, não é de todo surpreendente que o status de neurocirurgião fique para trás. O médico que usava seus pacientes para se autopromover se torna o supermago que irá controlar o tempo para salvar o mundo.
"O tempo é o inimigo", diz Kaecilius (Mads Mikkelsen), o poderoso vilão seduzido pela possibilidade de controlá-lo.
Esse é o tema central do filme, nossa mortalidade. Devemos aceitá-la, como sugere a Anciã, ou tentar conquistá-la, mesmo que isso requeira uma união com os poderes macabros do outro lado, o lado Sombra de Kaecilius e seu líder Dormammu?
VIAGEM NO TEMPO
O paradoxo é claro: se podemos andar para frente e para trás no espaço, por que não no tempo? E seria necessária uma aliança com o mal para controlá-lo?
Não se você for um físico teórico. Afinal, com as ferramentas da ciência, podemos construir modelos onde o tempo é controlável, ao menos no papel. Segundo a teoria da relatividade de Einstein, avançar no tempo, viajar para o futuro, é perfeitamente possível. Basta termos um foguete bem veloz, capaz de viajar com velocidade próxima à da luz. O obstáculo aqui é mais tecnológico do que conceitual.
Por outro lado, viajar ao passado é bem mais complicado, mesmo que loops fechados no tempo –viagens temporais nas quais a pessoa volta ao seu momento de partida– não sejam coisa apenas de ficção científica.
Em 1949, o brilhante matemático austríaco Kurt Gödel encontrou uma solução das equações da teoria da relatividade geral na qual, ao menos teoricamente, é possível viajar num loop temporal como podemos fazer no espaço.
Na prática, entretanto, a solução de Gödel e suas versões mais recentes continuam vivendo no mundo teórico. Existem diversos problemas, dado que espaços com loops no tempo tendem a colapsar sobre si mesmos.
Felizmente, num universo que segue as leis físicas da Marvel (quase) tudo é possível.
Quando o Doutor Estranho descobre que tem o poder de controlar o fluxo do tempo, vemos a imagem belíssima de uma maçã que se regenera continuamente ao ser consumida. Nesse pequeno pedaço de espaço, o tempo se passa num loop fechado, com a história terminando onde começa.
MULTIVERSO
Para proteger a Terra, o Doutor Estranho tem que viajar através do multiverso, no filme definido como uma coleção infinita de universos, cada qual com suas leis naturais, inspirado em especulações da física teórica de ponta.
Aqui reside Dormammu, Mestre das Sombras, que, por razões não explicadas, quer expandir seu domínio destruindo mais e mais mundos. Trabalho ingrato esse, destruir mundos num multiverso com um número infinito deles.
O filme mostra que o poder é uma armadilha: aquele que se acha poderoso é prisioneiro de sua própria cobiça, com vida trancada num loop fechado não de tempo, mas de poder. Apenas o desespero pode vir da cobiça, onde mais poder leva apenas a querer mais poder.
Um toque especial ocorre quando Estranho descobre a fonte da longevidade da Anciã. Para tal, ela optou por se aliar–ao menos em parte–com a Sombra, numa virada de roteiro que mostra que, muitas vezes, o objetivo final eclipsa os passos que devem ser dados em direção a ele; o fim justifica os meios, quando estes são moralmente sólidos.
No caso da Anciã, sua escolha é compreensível, já que é a protetora da Terra. A lição aqui é que outros, com valores morais bem menos louváveis, podem decidir que suas missões também são moralmente justificáveis. As consequências, como vemos na violência entre humanos que ocorre há milênios, são, em geral, trágicas.
Como nos mostra o Doutor Estranho, somos a soma de nossas escolhas e devemos considerar com muito cuidado aonde elas nos levarão. Nem sempre encontramos uma mentora como a Anciã ao longo do caminho.
MARCELO GLEISER é professor titular de física, astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, EUA. Seu livro mais recente é "A Simples Beleza do Inesperado" (ed. Record)