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    crítica

    Livro tem mérito de mostrar os processos dos reinos africanos

    LUIZ ANTONIO SIMAS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    13/01/2017 12h57

    Reprodução
    Procissão das riquezas do rei Abome, do livro "O Rei, o Pai e a Morte", de Luis Nicolau Pares
    Procissão das riquezas do rei Abome, do livro "O Rei, o Pai e a Morte", de Luis Nicolau Pares

    Uma breve pesquisa sobre a impressão que a maioria dos brasileiros tem a respeito das religiosidades africanas aqui redefinidas, provavelmente apontaria para a supremacia do culto aos orixás iorubás como sinônimo dessas religiosidades. Os estudos de Luis Nicolau Parés, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia, investigam, no entanto, outra tradição: a do culto aos voduns, compartilhado pelo africanos falantes dos idiomas do grupo gbe, genericamente conhecidos no Brasil como jejes, oriundos da região do Golfo do Benim, na África Ocidental.

    Em trabalho anterior, "A Formação do Candomblé: História e Ritual da Nação Jeje na Bahia", Parés dedicou-se ao estudo destas práticas religiosas no lado brasileiro do Atlântico. Nesta nova empreitada, atravessa o mar e concentra grande parte do estudo na região do Benin, em especial nos antigos reinos de Aladá, Uidá e Daomé. Apenas na última parte da obra o autor discute o que chama de desdobramentos atlânticos, estabelecendo conexões entre a costa africana, a Bahia e o Maranhão.

    Um primeiro grande mérito do livro é entender as práticas religiosas articuladas às práticas econômicas e políticas dos grupos estudados. Prevalece aí uma visão que não abre mão da historicidade dos processos de formação e fortalecimento dos reinos africanos, buscando compreender o culto aos voduns inseridos nestes processos e as implicações entre a dinâmica mercantil do tráfico de escravos e o conflituoso quadro político local.

    O aspecto mais fascinante do trabalho, porém, me parece aquele que, ao compreender a religiosidade em uma dinâmica social localizada no tempo e no espaço, demonstra que os deuses, os rituais e as devoções, são dotados de impressionante flexibilidade. O culto aos voduns se transforma, adquire novas dinâmicas e novos significados incessantemente, em diálogo constante com as circunstâncias. Como ressalta o autor, a capacidade de se apropriar de objetos alheios e interpretá-los segundo valores e preceitos locais, em determinadas conjunturas, dando a estes deuses e seus ritos novos significados e representações, é um traço distintivo da potência da crenças africanas.

    A tragédia incontornável do tráfico negreiro, afinal, configura-se também como um empreendimento inventivo que transforma as práticas religiosas dos dois lados do Atlântico, em um processo de recriação incessante que afeta a Costa da Mina e o Brasil. Ao analisar isso, o autor não se furta a encarar a dramaticidade do sistema escravista, os seus sistemas de poder, a violência, a racialização, as migrações, as fragmentações identitárias e as maneiras como as práticas religiosas respondem a isso.

    O Rei, O Pai E A Morte
    Luis Nicolau ParÉs
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    Nós vivemos, neste início de século XXI, tempos de intolerância assustadores. O culto aos voduns, com a capacidade de agregação e disponibilidade que traz, acaba sendo um contraponto às intransigências atuais e uma defesa da pluralidade das crenças. Os deuses, e o livro de Parés demonstra isso, nascem, morrem, se transformam, viajam, retornam e contam, mais do que sobre eles mesmos, as histórias dos homens e mulheres que os cultuam.

    LUIZ ANTONIO SIMAS, historiador, é autor "Pedrinhas Miudinhas" (Mórula)

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    O REI, O PAI E A MORTE
    AUTOR Luis Nicolau Parés
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 69,90 (488 págs.)

    Edição impressa

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