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    Depoimento

    Nos anos 90, pessoas iam em casa para pegar fitas de 'Twin Peaks'

    ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    21/05/2017 02h00

    Reprodução/IMDB
    O ator Kyle McLachlan na série "Twin Peaks" (1990), criada por David Lynch e Mark Frost
    O ator Kyle McLachlan na série "Twin Peaks" (1990), criada por David Lynch e Mark Frost

    Era sonho, ou era TV? Eram os dois. Em 1990, não dava para acreditar que uma série tão ousada como "Twin Peaks" fosse passar na televisão, ainda mais na aberta.

    Parecia um sonho que um diretor alucinado como David Lynch ganhasse espaço no horário nobre, ele que vinha de fazer um filme "cult", "Veludo Azul", e outro quase incompreensível, "Duna".

    Quem bancou foi a ABC, na época a segunda maior rede dos EUA (canais pagos não eram tão importantes). Começou em um domingo, 8 de abril, com um piloto de duas horas. Depois passou para as quintas, em capítulos de 60 minutos. Sempre às 21h.

    Eu estudava em Boston, EUA, e gravava tudo em VHS. Sem dar pausa nos comerciais, que era para ficar ainda mais bacana na hora de exibir para a galera, quando voltasse ao Brasil.

    Acabei voltando antes do último episódio, mas um amigo que morava na Califórnia gravou e completou a parada, mandando a fita para cá.

    A série passaria no ano seguinte na Globo, mas muita gente não aguentou esperar. O pessoal ia em casa pegar as fitas, para fazer festas temáticas de "Twin Peaks".

    E tema não faltava. Que série! Toda a atmosfera era de sonho. A começar pela música de abertura e pela trilha, sexy e climática, do compositor Angelo Badalamenti.

    As imagens dos bosques gelados passavam a sensação de que algo terrível podia acontecer a qualquer momento. E aconteceu.

    O assassinato da linda e jovem Laura Palmer. Num vilarejo do noroeste americano chamado Twin Peaks, quase na fronteira com o Canadá. Onde nada é o que parece, onde ninguém é o que parece.

    Quem seria o culpado? O namoradinho? Algum dos amigos, um mais suspeito que o outro? Alguma das amigas, uma mais maravilhosa que a outra (incluindo a indizível Audrey, interpretada por Sherilyn Fenn)?

    O delegado, o assistente maluco que só chora? Uma certa "mulher do tronco"? A mãe? O pai?

    Tarefa para o esquisitão agente Cooper (Kyle Maclachlan), enviado sabe-se lá por que pelo FBI especialmente para investigar o crime.

    "Twin Peaks" começou assim: uma narrativa inovadora para uma série, como se diz em inglês, de "whodunnit" (corruptela de "who's done it", "quem fez", ou seja, "quem matou").

    Mas, com o passar dos episódios, o foco foi se perdendo. Eram tantos os maneirismos de David Lynch, tantos penduricalhos sem função que ele encaixava no enredo, que a pergunta "quem matou Laura Palmer?'' passou para décimo plano.

    E a história foi se complicando, cada vez mais entremeada de sonhos e delírios. A própria resolução do mistério, quem era o assassino, não foi tão fácil de entender.

    Mesmo assim, "Twin Peaks" representou um marco na história da TV. Um fenômeno de inovação em forma e conteúdo que só seria igualado –mas não superado–, em séries como "Família Soprano" e "Game of Thrones".

    E que, com seus fiapos de narrativa e sensualidade claustrofóbica, estendeu a influência ao cinema, principalmente em diretores como Wong Kar-Wai.

    São heranças reais, provas de que "Twin Peaks" existiu mesmo. Porque às vezes, olhando para trás, parece que foi tudo um sonho.

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