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    RÉPLICA

    Biografia de Lima Barreto reforça ressignificação de autores negros

    SILVIO LUIZ DE ALMEIDA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    01/07/2017 02h00

    Um dos pontos fortes da comovente biografia de Lima Barreto escrita por Lilia Schwarcz é o destaque dado à relação entre a obra do escritor e sua condição racial. É um autor de "literatura militante, impactada por seu próprio contexto social", diz a biógrafa.

    O contexto social de Lima Barreto é o Brasil, país em que a raça é um elemento justificador de uma ordem politica autoritária e economicamente desigual. Ora, se o racismo não pode dar conta da vida de Lima Barreto, pode fornecer boas explicações sobre a sociedade que retratou de modo único e em que reivindicou "um sujeito autoral distinto da norma silenciosamente partilhada", nas palavras de Lilia Schwarcz.

    Dividem esse cenário histórico o negro Lima Barreto e o negro Machado de Assis. Machado, que jamais se "passou por branco", como afirmou Antonio Risério em resenha publicada na Folha. Nenhum negro pode se passar por branco sem realmente sê-lo, salvo nas fantásticas operações branqueadoras do racismo.

    Já alguns brancos se fazem negros ou "mulatos" quando é preciso conservar privilégios e desarticular reivindicações dos movimentos negros.

    Fazer silêncio sobre a própria raça ou levar vida "confortável e segura" não faz de ninguém branco. A verdade é que é possível ser negro de várias formas em uma sociedade com tão larga experiência em maltratar seu povo.

    Se a importação de categorias estrangeiras pode ser algo anacrônico, a ideologia da mestiçagem nunca corre esse risco, pois é sempre atual num país anacrônico.

    Onde raça e pobreza se cruzam em uma fórmula que resulta na morte de milhares de jovens negros, a ideologia da mestiçagem é central. Ideologia elaborada pelo establishment acadêmico e político –branco, privilegiado e racista– que, quando não viu no negro o grande problema nacional, reduziu-o a simples objeto de especulação científica.

    Ainda não existe um establishment acadêmico negro, por isso dele não poderiam vir as "crenças estranhas" ou o "bovarismo", termo que Lima Barreto utilizava para criticar ideias racistas. Quem sabe com as cotas raciais a que tantos se opuseram um dia isso venha a ocorrer.

    A nova biografia de Lima Barreto surge no momento em que movimentos negros e parte da academia esforçam-se para ressignificar a trajetória de brasileiros essenciais como André Rebouças, Luiz Gama e Lima Barreto, unidos pelo "fio existencial" da negritude. Tarefa importantíssima nesse momento em que o Brasil se vê obrigado a repensar a viabilidade de um projeto nacional em que o racismo não seja a peça de encaixe.

    SILVIO LUIZ DE ALMEIDA é advogado, professor universitário e presidente do Instituto Luiz Gama; é autor de "Sartre: Direito e Política" (Ed. Boitempo)

    Divulgação
    ORG XMIT: 303601_0.tif Literatura: o escritor Lima Barreto (1881-1922), autor do romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma", fotografado no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde hoje funciona o Intituto de Psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no ano de 1919. (Divulgação). *** PROIBIDA A PUBLICAÇÃO SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS ***
    O carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922)
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