• Ilustrada

    Saturday, 04-May-2024 12:17:21 -03

    O rock n' roll não está morto; ele agora é comandado por mulheres

    JOE COSCARELLI
    DO "NEW YORK TIMES"

    05/09/2017 02h00

    Natalia Mantini/The New York Times
    Laetitia Tamko (à esq.), do Vagabon, e Lindsey Jordan, do Snail Mail
    Laetitia Tamko (à esq.), do Vagabon, e Lindsey Jordan, do Snail Mail

    Há anos, os integrantes da equipe de críticos de música pop do "New York Times" - Jon Caramanica, Joe Coscarelli, Caryn Ganz e Jon Pareles - tentam descobrir o que exatamente aconteceu com as guitarras.

    Embora nunca tenha existido uma escassez das bandas de rock ditas "tradicionais" - digamos um quarteto, majoritariamente masculino e majoritariamente branco -, o impacto cultural de grupos como esses vem se reduzindo continuamente, diante de táticas, redes de distribuição e mensageiros musicais cada vez mais diversos.

    Mas ao conversamos sobre a música que mais nos entusiasma, começamos a apreciar cada vez mais a proporção espantosa do bom rock que vem sendo criada por mulheres e artistas não binários que trabalham logo abaixo da superfície do mercado.

    O rock indie sofreu uma crise de identidade especialmente forte nesta década. As bandas indie lideradas por homens começaram a parecer cada vez mais entediantes, ou até paródicas, como se estivessem esgotado suas ideias ou exaurido a paixão necessária a desenvolver ideias novas.

    Mas ainda assim nos vimos repetidamente reanimados, inspirados, comovidos e até chocados por uma nova geração de cantoras e de instrumentistas mulheres - punks em estilo e espírito e oriundas do ecossistema imortal da produção musical independente. Elas cantam sobre emoções tácteis, questões políticas candentes, e sobre muito mais.

    É hora de avaliar esse momento vibrante e honrar essas artistas, destacando a força e elegância de seu trabalho. Conversamos com elas sobre os motivos pelos quais fazem música, e sobre os obstáculos que a indústria da música e a sociedade mais ampla colocaram em seu caminho.

    Entrevistamos oito compositoras e líderes de bandas com estilos musicais que variam de sussurros íntimos (Vagabon, Soccer Mommy) a vulnerabilidade revigorante (Diet Cig, Sad13, Snail Mail), passando por agressividade radical (Downtown Boys, Sheer Mag, War on Women).

    *

    The New York Times - Como você começou a fazer música? Houve um momento em que você percebeu que, em vez de ser fã de bandas, poderia ser membro de uma banda?

    Sadie Dupuis, 29, do Sad13 e Speedy Ortiz - Será que sou a única pessoa que se inspirou muito com o filme "Josie e as Gatinhas"? É revelador que o exemplo que eu esteja usando seja o de uma banda fictícia [risos]. Mas eu tinha 13 anos quando o filme saiu, e pensei que nossa, que bacana, uma banda formada só por mulheres. Posso fazer a mesma coisa.

    Shawna Potter, 35, do War on Women - Vi Courtney Love tocando guitarra na MTV, no vídeo de "Doll Parts", e imediatamente pensei que podia fazer a mesma coisa. Eu nunca havia visto mulheres tocando na TV, antes disso, e nem tinha percebido que aquela era uma possibilidade.

    Christina Halladay, 32, do Sheer Mag - Se você não vê uma pessoa parecida com você fazendo aquilo que o interessa, o processo demora muito. Eu tentava fazer amizade com os garotos músicos que conhecia, e ficava por perto quando eles ensaiavam, como se estivesse dizendo "ei, estou aqui e sei cantar". Mas tive de esperar muito tempo - até que comecei a exigir meu lugar.

    Potter - A representação realmente importa. Não se pode ser uma coisa que você não tem como ver.

    O que você acha de ser líder da banda?

    Victoria Ruiz, 30, do Downtown Boys - É frustrante quando você não toca um instrumento na banda e - entre aspas - só canta. Porque a base do rock é um carinha que estraçalhe na guitarra - é isso que as pessoas veem como um bom músico.

    Dupuis - Aprendi muito sobre liderar uma banda vendo os shows [de Victoria], fazendo turnês com ela, porque as coisas que ela diz entre as canções abriram meus olhos para o que se pode fazer com o espaço, e como isso pode realmente galvanizar as pessoas da audiência. Há tanta reflexão, intenção e preparação em tudo que ela faz.

    Potter - Tive de lidar com a [palavrão] do "só cantora", e a única coisa que eu repetia a mim mesma era que "ninguém jamais disse que Robert Plant era só um cantor".

    Quais são alguns dos exemplos mais gritantes de sexismo que vocês experimentaram no mundo da música?

    Halladay - "Você é a organizadora da excursão?"

    Potter - "Você toca teclados? É namorada de quem?"

    Dupuis - Adoro quando coisas como essa acontecem quando estou ao lado de um cartaz gigante que mostra o meu rosto.

    Alex Luciano, 22, do Diet Cig - Sim, tipo, "estou carregando três amplificadores, você não viu?"

    Lindsey Jordan, 18, do Snail Mail - Eu disse que não queria trabalhar com certa pessoa, e me responderam "você quer mandar nudes?"

    Dupuis - Não gosto de falar da misoginia toda, mas um dos meus exemplos favoritos é um técnico de som que me levantou pela cintura e me tirou do caminho para passar por mim. Fiquei furiosa, e me lembrei de que conhecia os donos da casa, e os contatei e fiz com que o demitissem.

    De que outras formas vocês retomaram o controle, em situações como essas?

    Dupuis - Como líder de uma banda famosa, é óbvio que você tem poder. Minha solução favorita é ter o poder de contratar mulheres para cuidar da parte administrativa do show, das excursões, ou para as posições técnicas.

    Potter - Por algum tempo, viajei em excursão com Brooks, o guitarrista da banda, como dupla, só nós dois, e começamos a dizer a todos que éramos irmão e irmã, para as pessoas pararem de perguntar se estávamos namorando ou éramos casados.

    Halladay - Deus proíba que sejamos só colegas de banda.

    Ruiz - Mas também é difícil por a discussão sobre o sexismo na música ser muito unidimensional. Porque sou não branca e sou gorda, ninguém imagina que eu possa estar namorando com aquele branco gostoso da banda.

    Laetitia Tamko, 24, do Vagabon - Sim, é bem louco o quanto as experiências são diferentes, e as duas são ruins. Uma é que as pessoas fiquem olhando para você como se você, tipo, fosse uma coisa que elas querem adquirir. Outra é que eles nem prestem atenção em você - como se você não fosse de maneira alguma um fator naquela equação.

    Como os ouvintes lidam com essa virada no poder, em termos de gênero?

    Halladay: Os meninos adolescentes ficam muito zangados. [risos]

    Potter: Acho que gosto de tocar no War on Women porque se trata de uma banda mais pesada, mas muito abertamente feminista. Robert Plant - de novo - era sexual, certo, mas ele era um sujeito sexual e não um objeto sexual. Sinto que posso fazer esse papel e também gritar sobre o aborto e a cultura do estupro, e causar desconforto - especialmente entre os homens.

    Talvez eles se sintam atraídos por mim, talvez estejam confusos, ou assustados, ou percebam que nossa música não é necessariamente para eles. Se sou sou capaz de fazê-los sentir todas essas coisas, não me incomoda que me achem gostosa, porque sou um ser humano completo, com toda uma gama de qualidades.

    Dupuis - Boa parte da música com a qual cresci era muito heteronormativa, histórias confessionais contadas do ponto de vista masculino. As coisas que mais me empolgam envolvem introduzir elementos narrativos que não são exatamente atípicos, mas não são parte do cânone, tampouco - coisas normais em minha experiência como uma pessoa do gênero feminino.

    Por isso, o que mais me empolga é ver, por exemplo, uma menina de 13 anos que me lembra do que eu era. Mas também é maravilhoso ver um cara de 45 anos, que provavelmente gosta de Pavement, Sebadoh e Guided by Voices, agora se conectando a uma narrativa que se distancia do que foi a ponta de lança do rock por tanto tempo.

    Jordan - As mulheres não devem escrever sobre relacionamentos, porque isso é visto como trivial e idiota. Mas um branquelinho triste pode subir ao microfone e cantar que "tô com saudade da minha namorada".

    Potter - E ele será visto como gênio.

    Jordan - Sim, mas se uma mulher sobe ao microfone as pessoas reclamam de que ela está se lamuriando. Percebi, ao começar a compor canções que gosto de cantar sobre relacionamentos com mulheres de quem gosto, e sobre ser gay, que é chato imaginar que você precisa exceder as expectativas para ser considerado tão bom quanto alguém que se esforça muito menos.

    Sophie Allison, 20, do Soccer Mommy - Comecei na música só aos 18 anos. Eu tocava desde criança, mas não mostrava meu trabalho porque achava que as pessoas o levariam a sério. Achava que as pessoas diriam que era mais uma canção sobre meninas tristes - meio como Taylor Swift.

    Mas é uma posição muito vulnerável, se sentir muito magoada com uma pessoa, ou oprimida por aqueles que você ama. E acho que simplesmente expressar essas sensações para uma grande audiência tem algo de político, porque você está contrariando todos aqueles que dizem que isso é algo que você não deveria sentir.

    Você vê a política como parte explícita ou implícita de suas composições?

    Tamko - Por causa daqueles que represento e do momento em que escolhi compartilhar minha música, ela se tornou uma narrativa imposta a mim, de que eu mudaria o mundo do rock indie. Aprecio o fato, mas não estou aqui para mudar mundo algum.

    É realmente limitador aplicar um rótulo tão intenso a alguém só porque não há muito espaço para que pessoas como eu prosperem. Por que sou uma pequena minoria, e porque sou uma anomalia já que conto com uma plataforma como essa, a recepção que encontro em geral é "bem, é isso que você representa".

    Dupuis - Acho que narrativas demais são aplicadas a qualquer música que não se pareça com a linhagem infinita dos homens brancos cisgênero. Não houve uma geração do rock que tivesse tantas mulheres e pessoas não binárias liderando bandas, no passado. Talvez dentro de cinco anos não precisemos lidar com esse tipo de imposição editorial.

    Halladay - Acho que muitos de nós somos inerentemente políticos só por estarmos à frente de uma banda.

    Tamko - O que é bacana se não nos obrigarem a falar a respeito. [Risos]

    Halladay - É algo que cada um precisa escolher, e as mulheres, especialmente as mulheres não brancas, sofrem pressão para que sejam exemplos de comportamento, o que é realmente injusto. Para mim, essa posição é confortável - tipo, claro, pode me incluir -, mas isso deveria ser uma escolha.

    Quem é seu ouvinte ideal?

    Ruiz - Beyoncé. [risos]

    Allison - Meu ouvinte ideal são as mulheres jovens, especialmente as do meu cenário [Nashville, Tennessee]. Muitas meninas jovens me procuram depois dos shows para perguntar sobre como colocar suas canções no Bandcamp. É uma sensação ótima.

    Ruiz - Acho que o ouvinte ideal compreende a contradição entre nossa capacidade de falar sobre a sensação de tomar o poder [quando] também nos vemos muitas vezes nas situações menos poderosas, e temos de lidar com toda a bagagem emocional das pessoas com quem viajamos, das pessoas que estão em nossas bandas.

    Pensar simultaneamente sobre como liderar a banda e ao mesmo tempo estar por trás dela, segurando tudo, é um papel completamente contraditório. E creio que o ouvinte que compreende esse fato vai nos ajudar a batalhar pela liberdade e justiça muito mais do que alguém que tente nos enquadrar em um rótulo.

    Luciano - O papel de lidar com a carga emocional de todo mundo muitas vezes recai sobre as mulheres, nas bandas. Seus colegas confiam em você, e você precisa se apresentar, despejando emoção sobre uma multidão de gente que pode gostar do que você canta e pode não gostar, e depois nos bastidores você precisa prover apoio emocional, não só para a banda, mas também na Internet.

    Allison - É realmente cansativo. Você não tem direito a um dia ruim.

    Dupuis - Eu tenho dias ruins. Tenho dias ruins [palavrão]. [risos]

    Qual o papel da internet?

    Jordan - Para mim, tudo começou claramente no Bandcamp. Eu tinha 15 anos e postei quatro ou cinco canções que gravei no meu quarto com o Garageband, só por diversão. Foi assim que consegui a oportunidade de fazer nosso primeiros show. Eu estava no segundo grau, e mal saía do meu quarto. Foi muito bacana gravar canções minhas e, tipo uma semana depois, tocar ao lado de minhas bandas favoritas.

    Tamko - É uma coisa trabalhosa. Não quero romantizar o esforço, e ele é necessário. Na universidade, consegui dois diplomas em engenharia - a coisa mais difícil que fiz na vida. E decidi que ia mostrar minhas demos. O Bandcamp é o motivo para eu ter começado a sério na música.

    Potter - Isso só vai mostrar minha idade, mas no começo, batíamos nas portas dos bares. "Por favor, nos deixe abrir o show, não precisamos de cachê, e claro que não temos uma demo ainda".

    Jordan - Acho que o Bandcamp e o caminho do faça você mesmo são realmente bacanas, porque permitem que pessoas que talvez não possam pagar por aulas de guitarra, ou que tenham antecedentes financeiros diferentes, exibam sua música, sem necessariamente gastar US$ 1 milhão no estúdio de gravação. Todo mundo tem chance.

    Potter - Fico feliz por coisas como o Bandcamp existirem, porque, se você gosta de música e deseja encontrar música, ele faz com que isso seja possível. É muito mais positivo do que o YouTube. E se você só quer comentar e ser [palavrão], faça isso por lá, longe da minha música.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024