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    CRÍTICA

    'Anatomia da Melancolia' disseca vida de anatomista do século 17

    FELIPE FORTUNA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    21/09/2017 01h00

    Wikimedia Commons
    Carlos Daniel Aletto é o autor de 'Anatomia da Melancolia
    Carlos Daniel Aletto é o autor de 'Anatomia da Melancolia'

    ANATOMIA DA MELANCOLIA (muito bom)
    AUTOR Carlos Daniel Aletto
    EDITORA Iluminuras
    QUANTO R$ 42 (128 págs.)

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    Na página 36 de "Anatomia da Melancolia", de Carlos Daniel Aletto, lê-se a seguinte frase: "Eu parecia encantado pelos pálidos tecidos das janelas, que eram movidos pelo brando vento e transformavam o aposento em uma dança de fantasmas: até que uma das tábuas da tela se agitou como um postigo solto e me tirou da abstração".

    Em meio a anotações que roçam o lugar-comum e descrevem banalidades na aparência, surge a surpresa de um acontecimento que, em sua simplicidade, abre possibilidades de interpretação e de perspectiva.

    É como se, a cada página, o romancista argentino indicasse um "postigo solto" que o tira (e a seu leitor) da abstração, para logo lançar-se (e lançá-lo) em outra.

    Até mesmo o achado casual de um volume com o título "Anatomia da Melancolia", escondido não nos recantos das estantes da Biblioteca Nacional da França, mas em um microfilme, pode parecer a fórmula muito fácil para o começo de uma intriga.

    É que o escritor tem domínio do estilo e da ironia, da linguagem e dos seus desdobramentos: o livro que encontra precede em seis anos "The Anatomy of Melancholy", o portentoso tratado de Richard Burton, e mesmo esse pequeno romance de Aletto, com suas poucas 128 páginas, é o sinal irônico de que outro livro foi gerado sob igual título.

    O romance exibe uma estrutura em espiral, a partir da qual se vai aprofundando o conhecimento sobre o anatomista Andrés Vesalio, o primeiro a dissecar um corpo humano.

    Dissecação é palavra-chave no romance, por meio de uma narrativa que aparenta recriar a linguagem do século 17 e dá voz ao próprio Andrés Vesalio para que conte uma história que não apenas antecipa a de Richard Burton mas também a de quem deseje reconstituir qualquer época: será mentira, será verdade?

    A epígrafe do livro, meticulosamente escolhida pelo romancista, vem assinada por Jorge Luís Borges: "A literatura não é outra coisa senão uma mentira que diz a verdade."

    O autor de "O Aleph" é uma influência evidente, até mesmo na maneira ilusoriamente simples com que apresenta, repletos de erudição, os episódios aventureiros do anatomista, médico da corte de Felipe 2º, condenado à fogueira por sua obsessão em encontrar a melancolia que aniquila os seres humanos, e depois perdoado, e mais tarde morto em naufrágio.

    Além de Borges, aparece o onirismo de Bosch e de Brueghel, que também destrói qualquer limite entre o que é verdade e mentira.

    Umberto Eco, medievalista, mas igualmente erudito em tantos outros domínios, também deve estar presente "in spiritu" nesse romance. O italiano também se inspirava em episódios esquecidos de cientistas e pensadores que, com seus saberes e crenças, conformaram o mundo em que agora se vive.

    Seria reducionismo considerar "Anatomia da Melancolia" um "exercício literário". Mas ele o é com vigor que impressiona: mescla a narração apocalíptica da "Visão de don Túngano", a viagem alegórica de um monge irlandês de 1140, mas a todo momento descentraliza o fato para mostrar que tudo é mesmo ficção.

    Anatomia da Melancolia
    Carlos Daniel Aletto
    l
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    Pode ser lido como um "livro didático", desses em que se ensina a manter a prosa sob controle e com calculada tensão; a usar as citações e alusões para criar curiosidade, não para demonstrar domínio do conhecimento (e muito pelo contrário...); e de transmitir a lição de que toda reconstituição é erro.

    A história de Andres Vesalio se aproxima da história de cada um dos leitores desse livro, e é assim que o pequeno livro alcança tanta grandeza.

    FELIPE FORTUNA, 54, é poeta, ensaísta e diplomata. Lançou recentemente "O Mundo à Solta" (Topbooks) e "Taturana (Pinakotheke)", ambos de poemas.

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