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    Hoje é mais violento que em 1967, diz Zé Celso, que reencena 'O Rei da Vela'

    MARIA LUÍSA BARSANELLI
    NELSON DE SÁ
    DE SÃO PAULO

    29/09/2017 02h00

    Folhapress
    cena sono mortal
    Renato Borghi (dir.) e o Teatro Oficina em sua montagem original da peça "O Rei da Vela"

    Antes de montar seu clássico "O Rei da Vela", em 1967, José Celso Martinez Corrêa não tinha muito apreço pelo texto de Oswald de Andrade: "Achava muito futuristoide". Hoje porém acredita que a obra reverbera mais que à época. "Oswald dedicou a peça ao 'enjeitado', o teatro nacional. Agora, cara, tá mais enjeitado que nunca", diz o diretor.

    O espetáculo, cuja encenação original completa 50 anos nesta sexta (29), será remontado pelo Teatro Oficina, com estreia prevista para 21 de outubro no Sesc Pinheiros.

    A ideia é recriar a montagem de 1967, a primeira do texto de Oswald, escrito 30 anos antes, que marcou o teatro brasileiro e o tropicalismo.

    Hélio Eichbauer está reconstruindo os cenários da primeira versão (com palco giratório, influência que Zé Celso teve da alemã Berliner Ensemble). Renato Borghi, 80, retoma o papel do agiota Abelardo 1º, dono de uma fábrica de velas. Além de dirigir, Zé Celso, 80, faz a virgem sessentona Dona Poloca, em versão transexual da personagem aristocrática.

    Zé Celso e Borghi falaram à Folha sobre o cinquentenário:

    Lenise Pinheiro/Folhapress
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    Renato Borghi (esq.) e Zé Celso durante entrevista no Teatro Oficina

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    Folha - Como foi a primeira leitura de 'O Rei da Vela'??

    Zé Celso - Foi a leitura do Renato, no apartamento dos pais da Germana Delamare, na orla de Ipanema. No que ele leu, todo mundo ficou boquiaberto. Ele pegou a eloquência de Oswald de Andrade.

    Renato Borghi - Mas depois eu continuei lendo essa peça em vários apartamentos. A gente lia até ficar concreto.

    Zé - Agora ele faz paródias de vários estilos, por exemplo, dos amores parnasianos.

    Borghi - [como seu personagem Abelardo] Em sua vida toda, tão cheia de nobreza, nunca deu para um plebeu?

    Zé - [interpretando Poloca] Em segredo. Mas nunca em público, como essa garça que Deus me deu por cunhada!

    E a estreia, como foi a reação?

    Zé - Um silêncio absoluto [a peça termina pedindo que o público não aplauda]. Foi rompido por um cara que era bilheteiro. Era aquela emoção, e aí ele rompeu os aplausos.

    Borghi - Na estreia, achei engraçado que ninguém sabia realmente o que achou.

    Zé - O [artista plástico e cenógrafo] Flávio Império, por exemplo, não entendeu nada. Voltou no dia seguinte. Porque a gente "bouleversou" tudo.

    Borghi - As pessoas falavam "Que coisa, hein?", "Nossa". Mas emitir uma opinião estava difícil naquele dia. Teve um homem que entrou no palco, não na estreia, noutra sessão, e queria matar o autor [que morrera 13 anos antes].

    Zé - Mandou chamar no peito o Oswald de Andrade.

    Rei da Vela

    E depois vocês levaram "Rei da Vela" para outros lugares.

    Zé - Depois nós esteamos a peça em Paris.

    Borghi - E a gente estava lá durante a revolução de maio [de 1968]

    Zé - Quando o [cineasta Jean-Luc] Godard ia ser preso, a gente estava no hotel em frente e a gente jogou as cadeiras do hotel na polícia. Aí o cara jogou uma bomba, eu fechei a janela e veio bater no meu olho. Eu fiquei completamento cego.

    Boghi - E a Ítala [Nandi, atriz da peça], muito louca, gritando pra polícia: "N'arretez pas, c'est Godard, c'est Godard" [não prenda, é Godard, é Godard]. O cara não teve dúvida, mirou e pum.

    E qual foi o impacto da peça no público?

    Borghi - Na minha carreira, tem um Renato antes e depois de "O Rei da Vela". Antes eu era uma pessoa muito aplicada, eu estudava Stanislávski. Mas eu era muito tenso, tinha muita obrigação de fazer bem. E de repente fez um "clique".

    Zé - Mudou tudo, toda a minha geração se ligou no "Rei da Vela" e somou com "Terra em Transe", Hélio Oiticica, o Caetano viu a estreia. [Caetano Veloso depois musicou "Canção da Jujuba" para a peça]

    Borghi - Um dia ele apareceu com um poncho roxo e um jabuti. Caetano, né?

    Numa sessão?

    Borghi - É, levou um jabuti.

    Zé - É, ele vinha com aquelas roupas que ele usava, como Chacrinha. Aliás, o Chacrinha implicava porque dizia que a gente usava o nome dele, Abelardo. Mas era o Abelardo Pinto, o [palhaço] Piolin.

    Borghi - Eu não sabia que ele implicava. Inclusive estávamos inspirados nele [Chacrinha]. A gente pegou a cafonice brasileira, diluiu tudo e vomitou em forma poética.

    Zé - Ali nasceu o teatro de entidade, muito brasileiro, no sentido do candomblé. Porque não são personagens, são entidades que ele [Oswald] criou.

    Reprodução
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    Renato Borghi como Abelardo 1º na primeira montagem de "O Rei da Vela"

    Oswald trata de política, mas também é muito popular.

    Zé - Sim. Os modernistas e os antropófagos eram fãs do Piolin. Graças à geração de Oswald, a burguesia era ilustrada, criaram Masp, Ibirapuera, Cinemateca. Agora é um lixo.

    Borghi - Agora a burguesia não tem opinião, é uma coisa amorfa. Um fascismo.

    A peça contracena com isso?

    Zé - Sim. Esta época é muito mais violenta do que em 1967 na ditadura pré-AI-5. Agora está pior, acho que o Brasil está totalmente fascista. Estou sentindo no corpo.

    E como o público receberá "O Rei da Vela" hoje?

    Borghi - É provável que o público tenha regredido. Pode ser que a peça seja acusada de homofóbica, essas coisas.

    Zé - Pode ser politicamente incorreta. E ela é.

    Borghi - Tá uma bosta, né?

    Zé - Porque é uma peça sobre o patriarcalismo. E tem uma coisa no figurino acentuando o sexo dos atores. Isso nasceu porque a gente estava no restaurante Cervantes. Entrava qualquer homem e fazia assim [passa a mão sobre o sexo]. Esse virou o gesto fundamental do Abelardo.

    Borghi - O gesto fundamental, continência sexual.

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    + frases

    "Essa peça é atualíssima. Tem uma parte em que diz: 'A burguesia abandona a sua velha máscara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras!'"

    ZÉ CELSO, diretor de 'O Rei da Vela'

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    Lenise Pinheiro/Folhapress
    cena sono mortal
    Zé Celso (esq.) e Renato Borghi durante entrevista no Teatro Oficina

    "[A situação do país] piorou muito, né? A parada está muito pesada. Lembra o que a Cacilda [Becker] falava [na época da ditadura]? 'Eu vou botar meu decote e vou falar com o marechal e vamos levantar um dinheiro para o teatro'

    RENATO BORGHI, ator da peça

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    Ricardo Moraes - 1º.set.2006/Folhapress
    cena sono mortal
    Hélio Eichbauer no cenário do show "O Estrangeiro", de Caetano, baseado no cenário de "O Rei da Vela"

    "Conheci Zé e Renato em Praga em 1964, eles me chamaram para o Oficina quando terminasse o curso com o [cenógrafo Josef] Svoboda. Mas fui para Cuba e fiquei lá um ano, trabalhando. Vim com essa experiência de Havana, da revolução tropical, e empreguei a cor no "Rei da Vela". É uma peça a partir dessa colagem que foi o teatro futurista e cubo-futurista russo, com o pé no Brasil do modernismo. Mistura vaudeville, circo, ópera. Na realidade de uma época de censura, ditadura, criamos um delírio tropical"

    HÉLIO EICHBAUER, cenógrafo de "O Rei da Vela", em 1967 e agora

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    Marcus Leoni - 31.ago.2017/Folhapress
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    O escritor e frade dominicano Frei Betto

    "Sempre brinquei com o Zé que ele fez do teatro a arma dele, que só faltava a peça terminar com um ato definitivo: Colocar o detonador de dinamite no palco e acionar. Ela provocou um choque cultural incrível, mas também moral. Muita gente saía do teatro. E um frade ali, que morava no convento das Perdizes, onde moro até hoje. De vez em quando o Zé viajava e lá estava eu, fazendo o papel de diretor. Cara, vou falar, sinceramente: A maior tentação que tive de abandonar a vida religiosa não foi casar, foi ser diretor"

    FREI BETTO, frade dominicano e escritor, assistente de direção em 1967

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    reações da plateia

    Publicadas na Folha em 4 de outubro de 1967

    "O que está acontecendo com 'O Rei da Vela' em suas encenações é algo inédito. Pela primeira vez, acho, o teatro tem o poder de provocar reações num público gelado", avaliou José Celso Martinez Corrêa, dias após a estreia inédita que celebrou a reabertura do Teatro Oficina.

    As reações do público foram diversas, conforme reportagem publicada na Folha em 4 de outubro de 1967. Parte da plateia recorreu à polícia e até à Divisão de Diversões Públicas (censura), que, apesar de ter solicitado cortes no espetáculo, não alterou o contexto da obra de Oswald de Andrade.

    "Felizmente temos uma censura que está compreendendo o caráter artístico da peça e garantindo suas representações, apesar dos protestos de pessoas desatualizadas e que consideram-na ofensiva, subversiva e obscena", disse o diretor na época.

    Na sexta (29), a plateia era formada em sua maioria por estudantes, que receberam o espetáculo como "uma bomba", conforme relatou a Folha.

    No sábado (30), as reações não foram diferentes. Críticas ao texto, que o consideravam violento, pornográfico e de muito mau gosto, foram levantadas por parte do público. Para José Celso, o mau gosto era proposital e o bom gosto estava "sepultado".

    A melhor reação dos espectadores, de acordo com o diretor, foi manifestada na terceira encenação, no domingo de 1º de outubro, quando, após terem aplaudido o espetáculo, deixaram o teatro sem "um aplauso".

    Com um nível de moral "elevadíssimo", como classificou José Celso, a peça, que, segundo ele, escandalizou uma minoria do público, impressionava pelo fato de apresentar "uma realidade brasileira que não queremos admitir e que precisa ser transformada em função de uma realidade exterior".

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    censura

    Publicado na Folha em 11 de outubro de 1967

    No dia 10 de outubro, dois agentes da Censura Federal e duas autoridades do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) entraram no Oficina e, dirigindo-se ao palco, retiraram um canhão de madeira que iluminava a plateia e em seguida pediram ao diretor a retirada de uma peça de plástico que servia de sorvete como simbologia ao pansexualismo.

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    maio de 68

    Publicado na Folha em 16 de maio 1968

    As reações contrárias aos preceitos de "O Rei da Vela" foram manifestadas também no Festival de Nancy (França), encerrado na primeira semana de maio de 1968. De um lado, críticos focaram na obscenidade e de outro como "um espetáculo riquíssimo", atrelando-o a questões sociais e políticas do Brasil na época.

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