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    Documentos revelam como a CIA salvou Leonel Brizola

    GRACILIANO ROCHA
    DE PORTO ALEGRE

    22/08/2010 08h00

    O historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira encontrou os rastros da operação norte-americana para salvar Leonel Brizola (1922-2004) em documentos guardados no Arquivo Nacional, em Brasília - clique aqui para visualizá-los.

    Autor do livro "O Governo João Goulart - As lutas sociais no Brasil" (Ed. Unesp) e "Presença dos Estados Unidos no Brasil" (Civilização Brasileira), Bandeira afirma que o presidente Jimmy Carter (que governou os EUA entre 1977 e 1981) usou a CIA (Central Americana de Inteligência) para proteger Brizola e desgastar a ditadura brasileira (1964-85), com a qual Washington vivia uma fase de atritos.

    Aposentado, Moniz Bandeira vive na Alemanha. Ele foi professor de história da política exterior do Brasil na Universidade de Brasília e professor visitante nas universidades de Heidelberg (Alemanha), Estocolmo (Suécia) e Buenos Aires (Argentina).

    Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida pelo historiador ao caderno Ilustríssima.

    Folha - Brizola nacionalizou companhias norte-americanas quando governador do Rio Grande do Sul (1959-63) e era considerado inimigo dos interesses de Washington na América do Sul. Por que Washington montou uma operação para protegê-lo?

    Luiz Alberto Moniz Bandeira - Creio que o governo do presidente Jimmy Carter já havia estabelecido um entendimento com Brizola antes de sua expulsão do Uruguai, a fim de jogá-lo como carta contra o governo militar do presidente Ernesto Geisel (1974-79), que já não mais lhe convinha. O governo Geisel firmou acordo nuclear com a Alemanha, reconheceu os governos revolucionários de Angola e Moçambique [em 1975], apoiou a classificação do sionismo como racismo e denunciou o acordo militar Brasil-EUA, de 1952. Trata-se de uma hipótese.

    Folha - A expulsão de Brizola do Uruguai foi resultado de pressão do governo brasileiro ou de algum setor influente no regime militar?

    Luiz Alberto Moniz Bandeira - Não creio, absolutamente, que a expulsão de Brizola resultasse de uma pressão do governo brasileiro. Tudo indica, sim, que a pressão partiu do setor militar ligado ao general Sylvio Frota, ministro do Exército, que tramava um golpe contra Geisel por divergir radicalmente de suas diretrizes políticas, sobretudo na política exterior. O próprio Geisel, em suas memórias, insinuou claramente que a pressão sobre o governo militar do Uruguai partiu dessa facção vinculada a Frota.

    Folha - O relatório do Ciex (Centro de Informações do Exterior, ligado ao Ministério das Relações Exteriores) número 242/77 mostra que Paulo Cavalcanti Valente, um jornalista asilado em Montevidéu e amigo de Brizola, foi contatado em maio de 1977 para articular uma reunião entre ele e diplomatas americanos. Já havia interesse dos EUA em oferecer o asilo antes mesmo da expulsão de Brizola (ocorrida em setembro do mesmo ano)?

    Luiz Alberto Moniz Bandeira - Sim, tudo indica que já havia entendimento prévio. Há indícios que tendem a confirmar essa hipótese. O que me parece muito estranho é o fato de o relatório do Ciex informar que Paulo Cavalcanti Valente recebeu diversas cartas pela mala diplomática dos EUA, e a sugestão de que procurasse Brizola e estudasse a possibilidade de um contato seu com membros da Embaixada americana. Esse informe leva a crer, se comprovado por outro documento, que Paulo Cavalcanti Valente, em Montevidéu, estava infiltrado entre os asilados, trabalhando para a CIA. Valente era sobrinho do ex-deputado Tenório Cavalcanti, eleito pela UDN-RJ e conhecido como o "deputado pistoleiro", "o homem da capa preta", embaixo da qual transportava sempre uma metralhadora portátil. Sua candidatura ao governo do Estado da Guanabara, em 1960, foi provavelmente articulada e encorajada pela CIA, a fim de tirar votos do candidato do PTB, o deputado Sérgio Magalhães, percebido como homem de esquerda, nacionalista, e favorecer a eleição de Carlos Lacerda, candidato da UDN.

    Folha - Amigos de Brizola relataram que ele achava que por trás da expulsão pela ditadura uruguaia havia um interesse da ditadura brasileira de prendê-lo ou mesmo matá-lo. O sr. considera isso plausível?

    Luiz Alberto Moniz Bandeira - O interesse na sua expulsão do Uruguai, para forçá-lo a regressar ao Brasil por falta de opção de asilo, partiu certamente não do presidente Geisel, mas do setor militar liderado pelo general Frota. Se Brizola entrasse no Brasil, fosse preso ou fosse morto por militares, possibilidade esta que Frota recordou em suas memórias haver advertido o presidente Geisel, seria um pretexto efetivo para o golpe que ele pretendia desfechar.

    Folha - O que pode explicar o fato de Brizola e a mulher terem sido levados para o apartamento na Calle Uruguay, em Buenos Aires, e não para um hotel?

    Luiz Alberto Moniz Bandeira - Sem dúvida, o governo americano não podia retirar Brizola do Uruguai, fazê-lo entrar na Argentina para tomar o avião no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, sem lhe dar o máximo de segurança. Daí a necessidade de alojá-lo, para passar a noite, em um apartamento reservado, secreto, da Embaixada americana ou, mais precisamente, da CIA. Os serviços de inteligência, particularmente a CIA, mantêm em alguns países e em certos casos, apartamentos de segurança

    Folha - Que papel é possível supor para a CIA nesta operação?

    Luiz Alberto Moniz Bandeira - Em todas as embaixadas e consulados dos EUA há agentes da CIA exercendo aparentemente funções diplomáticas, com passaporte diplomático, para ter imunidade e impedir a prisão. Decerto foram os que acompanharam Brizola, a fim de garantir sua entrada na Argentina, cuja ditadura militar (1976-83) lhe negara o visto de entrada, e protegê-lo contra qualquer eventual atentado, porquanto era Buenos Aires, a cidade onde a Operação Condor estava em franca execução, havendo assassinado o general Carlos Prats, ex-ministro do presidente Salvador Allende, no Chile, e sua esposa Sofia, em 1974; os parlamentares uruguaios Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz, em maio de 1976; o general Juan José Torres, ex-presidente da Bolívia, em 2 de junho de 1976, entre dezenas de outros políticos e militantes da oposição. Daí a necessidade de dar cobertura a Brizola na sua passagem e durante sua permanência, por 24 horas, naquela cidade.

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