Folha - Quão radical o sr. é na recusa da carne? O sr. come algum tipo de proteína animal -frutos do mar, talvez?
Peter Singer - Eu me disponho a comer bivalves. Em outras palavras, ostras, mariscos, vieiras. Não acredito que tenham o tipo de sistema nervoso com alguma probabilidade de sentir dor. É o único tipo de carne que eu como. Sou um pouco flexível quanto a comer ovos ou leite. Normalmente, não compro leite, uso leite de soja etc., mas às vezes, quando estou viajando, é difícil fazer isso, e eu admito alguns laticínios. No que respeita a ovos, se eu souber que as galinhas podem caminhar e ter uma vida razoável, considero-os um pouco mais aceitáveis.
Muitas coisas mudaram desde 1975, como o sr. assinala no prefácio à nova edição brasileira de "Libertação Animal". Os direitos dos animais recebem muito mais atenção hoje do que há três décadas, na Europa e até nos EUA. Qual é a força motriz por trás dessa mudança -a exposição da criação em escala industrial por meios de comunicação impressos e na TV, ou talvez a disseminação do pensamento ecológico nas culturas ocidentais, em especial entre pessoas jovens?
As duas coisas, e eu também acrescentaria preocupações relacionadas com saúde, porque algumas pessoas têm suspeitas justificadas sobre o impacto na saúde de comer animais criados em fazendas industriais. Todos os três desempenham um papel, mas certamente penso que há muito mais consciência sobre problemas com o bem-estar dos animais, particularmente relacionados com a criação industrial. Simplesmente não se sabia muito sobre o que estava acontecendo, como essa comida era produzida, e alguns não sabem virtualmente nada, ainda.
Penso que há maior consciência hoje do que havia antes, e isso fez uma grande diferença. Mas o impacto ambiental da criação industrial também é importante, e isso cresceu com a preocupação pela mudança do clima, é claro. Alguns organismos oficiais, como o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima [IPCC, em inglês] das Nações Unidas... Seu presidente [Rajendra Pachauri] disse que devemos comer menos carne. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação [FAO] fala que a criação de animais é uma fonte de emissão de gases do efeito estufa maior que todo o setor de transporte. Esses fatos levaram muitos ambientalistas a decidir que não devem comer carne.
Mas a preocupação com os direitos dos animais propriamente ditos, o sr. a relacionaria com consciência ambiental, também? Ou é mais um sentimento de que os animais não devem ser maltratados? Algumas pessoas não se importam com o ambiente, mas se importam com os animais.
Creio que há dois movimentos distintos, aqui. Preocupação com o ambiente é uma coisa, e ela de fato traz razões para não comer carne. A preocupação com animais individuais é uma coisa diferente. No passado, muitos ambientalistas diziam que não se importavam com vacas ou galinhas, há abundância delas e nenhum risco de extinção; além disso, não existem no ambiente natural. Não temos nada a ver com elas. Agora se dão conta de que têm de se preocupar com isso, por causa do efeito no clima e, claro, na água e nos solos, além de poluição.
A preocupação com animais é individual: o sofrimento de apenas um animal é uma coisa ruim. Não tem nada a ver com esse animal ser membro de uma espécie ameaçada. É um movimento que tem crescido, com justiça, desde que "Libertação Animal" foi publicado.
E qual desses movimentos foi mais forte para alterar a atitude dos consumidores?
Acho difícil dizer, realmente não tenho evidência clara de que qualquer um dos dois tenha sido mais forte que o outro. É parte de uma atitude geral.
Métodos mais humanos de criação são um grande passo adiante, mas ainda distante de decidir não comer carne de uma vez por todas, que o sr. recomenda como a decisão mais acertada. Como o sr. explica esse apego ao uso de animais como coisas pelos seres humanos? Tenho duas hipóteses, nenhuma delas muito convincente: 1) A inércia cultural do "especismo", que a maioria das pessoas sente como uma segunda natureza; e 2) Preferências comportamentais selecionadas por forças evolutivas que favorecem o valor nutricional para garantir sobrevivência.
Ambas têm um papel. Concordo que no passado evolutivo provavelmente tínhamos um gosto pela comida que era muito nutritiva, mas não daria muita importância a isso. Veja os nossos parentes mais próximos. Chimpanzés e bonobos comem muito pouca carne. Quando a gente conseguia, comia, e o gosto era bom. Talvez isso ainda seja parte de nossa natureza biológica, embora hoje a gente tenha mais problema com obesidade do que com não ter comida suficiente. Tenho certeza de que é uma coisa subjacente, mas a cultura definitivamente tem um papel, pois pessoas são criadas em culturas vegetarianas. Os hindus, por exemplo -muitos são vegetarianos e não têm esse desejo de comer carne. Ou como meus filhos, nós os criamos como vegetarianos e, agora que estão com seus 30 e tantos anos, obviamente é uma escolha deles, ainda são vegetarianos. Foi fácil para eles fazer isso, porque se acostumaram a não ter um apetite por carne.
De novo: o sr. não atribui um peso maior a um desses fatores, ambos desempenham um papel.
Bem, aqui eu diria que o fato evolutivo tem de ser o mais básico, porque sempre é preciso perguntar por que as culturas se desenvolvem de certas maneiras, como o hábito de comer carne, que existe na maioria das culturas, com o vegetarianismo como exceção. Sempre presumi que seja um reflexo dessa tendência biológica que herdamos, o que não quer dizer, certamente, que sejamos biologicamente determinados a comer carne.
Somos felizes o bastante de ter a cultura para nos ajudar.
Temos várias opções de comida. A mesma coisa acontece com o açúcar, obviamente. Temos apetite por coisas doces, mas percebemos que não podemos exagerar, como a maioria das pessoas faz, senão nos tornaremos extremamente obesos.
Uma questão relacionada com meu país: no seu prefácio, o sr. recomenda que o Brasil não siga a trilha das nações industrializadas e não adote métodos de confinamento na pecuária. Mas o desmatamento é um problema mais premente na Amazônia, impulsionado pela criação de gado em imensas áreas de terra barata desmatadas para obter pastagens. Ambientalistas e ecologistas no Brasil lutam para que os fazendeiros se modernizem e adotem métodos mais produtivos, o que normalmente inclui algum tipo de confinamento, de modo a reduzir as taxas de desmatamento. Como escapar ao dilema entre direitos dos animais e conservação?
É difícil, obviamente. Há valores conflitantes, aqui. Eu não encorajaria fazendeiros a se tornarem mais intensivos, espero que possam obter produtos agrícolas de alto valor em parcelas limitadas de terra. Seria a melhor saída, usar terras para pastagem já existentes fora da Amazônia, onde se possam praticar formas mais extensivas de pastagem, e eu sei que o Brasil tem grandes áreas onde isso já acontece. Certamente eu não encorajaria a destruição da Amazônia de maneira a permitir mais pastagem, mas sim o uso de áreas que não sirvam para cultivar plantas que produzam valor comparável.
Há muita preocupação com isso, aqui, porque a demanda por carne bovina está crescendo, especialmente na Ásia, e o Brasil é, no momento, o maior exportador.
Obviamente é um desastre, e o problema é que a demanda e a prosperidade crescente da classe afluente na China, que quer comer mais carne. Não estou certo do que pode ser feito para conter isso. Idealmente, iríamos até a raiz e tentaríamos persuadir os chineses de que é um desastre para o planeta e para os animais, e que não seria tampouco bom para sua saúde. Mas não sei, de fato, como alcançar essas pessoas.
A cultura da mudança teria de esperar um pouco mais, lá, porque eles estão no lado oposto da curva.
Há um pequeno movimento pelos animais em desenvolvimento na China, com o qual estou em contato. Na realidade, há uma edição de "Libertação Animal" em chinês. Na primavera pretendo ir à China e falar sobre esse tema lá, algumas pessoas estão pedindo que eu vá, há um par de anos. Mas é um país vasto, e não sei bem como atingir tantos milhões de pessoas.
Não creio que essa mensagem vá ser muito popular por lá, ainda.
Decididamente, não (risos).
Vejo um problema com uma cifra citada em seu livro, de que 10 bilhões de aves e mamíferos são mortos todos os anos nos EUA. Corrija-me se estiver errado: isso equivale a mais de 90 animais mortos por dia para cada americano. É isso mesmo?
Um monte desses animais é para exportação, não é tudo para os americanos. Mas são números do USDA [Departamento de Agricultura dos EUA], e a maior parte disso são frangos, uma fração desproporcional, dos quais boa parte é exportada. Por isso, os números são tão altos. Se quiser, posso buscar a referência, eles publicam esses números todos os anos.
Suponha agora que 7 bilhões de pessoas se tornem vegetarianas num futuro próximo. Seria preciso mais terra ou menos terra para produzir a quantidade requerida de proteína para alimentar a população mundial?
Muito menos, muito menos. Porque estamos dando 756 milhões de toneladas de grãos a cada ano para ração animal, dos quais se consegue de volta, em valor nutricional, na média um quinto disso. Parte vai para aves, que rendem um terço, e outra parte vai para gado bovino, que rende um décimo; 756 milhões de toneladas é um bocado de grãos. Além disso, cerca de 98% da soja do mundo, da qual o Brasil tem a maior parte, também vai para ração. É uma quantidade enorme de soja que poderia ser usada para fazer tofu e proteína texturizada, ou usada em grãos, o que seria bem nutritivo, também. Poderíamos reduzir dramaticamente a área agrícola de que precisamos, dessa maneira.
O pescado é uma fonte importante de proteína, mas igualmente premido por limitações de sustentabilidade e problemas éticos, como é o caso do bacalhau e do atum, respectivamente. O sr. recomenda evitar proteína de pescado, também?
Sim, mas posso compreender que, para algumas pessoas com poucas alternativas, a questão seja diferente. Para quem tem escolha, precisamos distinguir entre peixes de criadouros e peixes selvagens. Mesmo no caso de peixes cultivados, quando se trata de carnívoros como o salmão, precisamos pescar para alimentá-los, e aí temos o mesmo problema da criação industrial de animais: pescar duas toneladas de peixes para produzir uma tonelada de salmão. Temos aí um processo de desperdício.
Quanto a pescado da natureza, obviamente há grandes problemas de sustentabilidade. Muitos dos estoques estão, em grande parte, esgotados. Além disso, não há abate humanizado de peixes, e estou certo de que sofrem na maneira como são mantidos vivos nos conveses, sufocando, ou nas linhas de espinhel. Creio que não é defensável, se você tiver alternativas a comer pescado.
O melhor seria ter criadouros de peixes herbívoros, em que produziríamos vegetais para alimentar os peixes e obter proteína animal. É um pouquinho mais defensável, mas ainda penso que, por causa dos problemas com o modo como são tratados, não seria recomendável comê-los.
Não há uma distinção muito clara a respeito de sistemas nervosos capazes de sentir dor ou não, em termos evolucionistas. Há um contínuo de sistemas nervosos mais complexos, ou menos complexos, entre as espécies. É correto comer insetos? Ouriços-do-mar? Camarões? Lagartos e sapos?
Eu acho que é correto comer ostras e mariscos, mas concordo que há um contínuo, sem uma linha preto no branco entre as diversas espécies. Porém, há evidências convincentes de que todos os vertebrados podem sentir dor. Quando se trata de invertebrados, há menos espaço para isso. Não diria que nenhum invertebrado possa sentir dor, porque, se você olhar para o polvo, é difícil acreditar que não seja um ser consciente. Se olhar para as ostras, é difícil acreditar que sejam conscientes. Se olhar para os crustáceos, camarões e lagostas, é mais duvidoso, eu lhes dou o benefício da dúvida, mas não posso dizer com muita confiança se podem sentir dor. O mesmo seria verdadeiro para insetos. É possível explicar insetos como se eles fossem autômatos, com um programa interior e nenhuma consciência, mas não poderia dizer com segurança se é esse o caso.
Não é algo que se possa decidir, então?
No caso dos invertebrados, creio que não seja relevante, com exceção do polvo, numa ponta, e as ostras na outra. No meio, há uma zona cinzenta, em que não dá para decidir.
Cabe a cada um tomar uma decisão.
Sim, você examina a evidência e tenta chegar a uma conclusão.
Quando o sr. compara cavalos e cães adultos, em termos de consciência e senciência, com humanos recém-nascidos, concluindo que os primeiros são superiores, não está deixando de fora a questão do ser humano potencial que se desenvolverá do bebê? Esse potencial também não merece um valor?
Essa é uma questão difícil e controversa, porque envolve o debate sobre aborto. Mas gostaria de dizer uma coisa antes de abordá-la: há seres humanos que não têm potencial algum, por causa de dano cerebral, por exemplo, ao não ter recebido oxigênio suficiente no nascimento, ou hemorragia cerebral no caso de extremamente prematuro, ou alguma condição genética. Mesmo que você aceite que há um potencial para consciência ou um alto nível de atenção, algo assim, portanto com um status separado, superior ao de animais, você ainda teria de considerar se haveria justificativa para tratar humanos sem esse alto potencial melhor que os animais. Qualquer que seja o seu pensamento sobre esse potencial, ainda haverá problema em traçar uma linha delimitadora em torno dos humanos e afirmar que todos têm um status moral mais elevado que o de animais.
Quanto ao potencial, não penso que um ser tenha direitos ou um status moral com base em seu potencial. Acho que, num mundo com relativamente poucas pessoas, você poderia dizer que é melhor ter mais pessoas com um alto nível de consciência, e que, portanto, valorizamos esse potencial a ponto de trazê-los para o mundo. Mas temos 7 bilhões de pessoas no mundo, está meio lotado, não creio que devamos produzir mais desses seres. E, se não queremos produzi-los, não fica claro por que ter potencial seja o bastante para dar a esses seres um status moral. Se não pensamos que temos uma obrigação de criar mais seres humanos, então não vejo por que uma entidade, um embrião ou feto com potencial para um nível mais elevado de consciência, teria necessariamente um direito maior à vida que um animal.
Tenho uma questão sobre a analogia entre "especismo" e racismo: e a possibilidade de que o "especismo" seja um traço selecionado naturalmente, com base em diferenças demonstráveis que não são possíveis de sustentar no caso do racismo?
Toda analogia tem pontos de similaridade e de diferença. Neste caso, a similaridade é que existe esse grupo dominante que tem o poder e desenvolve a ideologia que justifica a exploração do grupo mais fraco sobre o qual tem poder, e que então usa a dominância para seus propósitos. Acho que vemos isso no caso do racismo, e é claro que o paralelo mais próximo é a escravidão, em que humanos de outra raça eram simples coisas de usar. Essa é basicamente a maneira como tratamos os animais.
Mas é claro que há diferenças, e uma delas é que, de fato, há disparidades entre as capacidades cognitivas entre humanos e animais, de um modo inexistente entre raças humanas. Obviamente há diferenças entre indivíduos humanos, mas não entre raças.
Concordo que existe essa diferença, mas a questão é se ela, de fato, justifica dar a esses seres um status moral diferenciado, e isso nos remete ao que acabamos de discutir -o fato de que nem todos os humanos têm essa diferença. É um argumento decisivo para dizer que temos o preconceito de que o "especismo" é algo que existe e podemos justificar o fato de humanos terem mais capacidades cognitivas e, assim, status moral mais elevado.
O sr. leu os livros de Michael Pollan? O que acha deles?
Li todos. Ele tem prestado um grande serviço ao informar o grande público sobre as maneiras com que os animais são abusados, particularmente ao encorajar as pessoas a evitar produtos de fazendas industriais, e também ao dizer que as pessoas devem comer menos carne. É o espírito de sua frase feliz, em três partes: as pessoas devem comer comida, não muita e, em geral, vegetais. Tudo isso é muito bom.
É claro que, em "O Dilema do Onívoro", ele faz críticas a minhas visões em "Libertação Animal", mas acho que seu argumento é um pouco estranho, para falar a verdade. Numa passagem, ele considera meu argumento, de que falamos há pouco, da comparação entre alguns humanos e animais, em que alguns humanos não têm alta capacidade, e diz que todos os humanos, mesmo aqueles com menor capacidade, ainda têm um status moral mais elevado.
Está no capítulo sobre Joe Salatin, da fazenda Polyface (EUA), quando pergunta por que ele acha que temos justificativa para matar animais, e Salatin diz algo como, bem, Deus nos deu licença para matar. E Pollan não diz nada como, sabe, eu obviamente também sou cristão e também acredito que Deus nos deu os animais para matar. Pelo que sei, não é o que Pollan realmente acredita, que seja de fato um bom argumento, mas ele não diz qual é o seu próprio argumento. Ele meio que deixa essa questão no ar.