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    O último suspiro de Ronald Biggs

    ANDRÉ BARCINSKI
    ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

    20/11/2011 08h00

    Demorou quase 50 anos, mas Ronald Arthur Biggs finalmente se viu frente a frente com a imprensa britânica. A mesma imprensa que, desde 1963, não se cansa de falar dele, para o bem e para o mal.

    Em sua primeira entrevista coletiva em solo inglês, realizada na última quinta-feira com a participação da Folha, Biggs, 82, um dos célebres criminosos do assalto ao trem pagador de Glasgow --e velho conhecido dos brasileiros, tendo morado por mais de 30 anos no Rio-- disse que só quer viver seus últimos anos em paz. "É a última entrevista que eu dou", anunciou.

    Com a saúde debilitada por sete derrames, Biggs, que hoje vive numa clínica de repouso, surgiu numa cadeira de rodas, vestindo terno e um cachecol do Arsenal, seu time do coração. O motivo da coletiva foi o lançamento de sua autobiografia, "Odd Man Out" [M Press (Media), 464 págs., 20 libras, cerca de R$ 55], versão ampliada do livro publicado em 1994. Com 200 páginas a mais, a nova versão --ainda sem editora no Brasil-- abrange os 17 anos desde então, incluindo a história do retorno à Inglaterra.

    Biggs não consegue falar e se comunica apenas por uma tábua com o alfabeto, onde escreve as palavras. O filho, Mike, e o biógrafo, Chris Pickard, completam as frases que ele inicia. Cercado por mais de 50 jornalistas e fotógrafos, além de incontáveis admiradores --incluindo um grupo de motociclistas da gangue Hell's Angels--, Biggs disse se arrepender de seu crime e de ter causado tanto sofrimento à família. "Só não me arrependo de ter fugido da cadeia. A pena que me deram, 30 anos, foi uma condenação política."

    Apesar da aparência frágil, continua com o bom humor que sempre o caracterizou. Mostrou a língua para os fotógrafos, autografou livros para fãs e, questionado sobre se sentia saudade do Brasil, respondeu: "Sim. Do futebol."

    Mike, o filho, disse que o levou para assistir à animação "Rio", do brasileiro Carlos Saldanha: "Ele ficou emocionado. Qualquer menção ao Brasil o deixa feliz."

    O CRIME

    Na madrugada de 8 de agosto de 1963, um grupo de 16 homens cometeu um dos crimes mais célebres da história da Inglaterra: o assalto ao trem pagador.

    O crime foi obra de dois bandos rivais, que resolveram se juntar para um grande golpe. Ronnie Biggs já era, àquela altura, um criminoso conhecido da polícia, com diversas prisões, por delitos como furto e roubo de carros.

    O trem vinha de Glasgow com destino a Londres, levando 75 funcionários do correio. Em outro vagão, estava o objeto de desejo do bando: 120 sacos contendo 2,6 milhões de libras (mais de 40 milhões de libras, ou R$ 112 milhões, em valores atuais) de bancos escoceses, guardados por cinco homens.

    Por volta de três horas da madrugada, o trem passava por uma área remota quando parou num inesperado sinal vermelho, adulterado pelo bando. Os criminosos invadiram o trem, renderam os condutores --um deles foi ferido com um golpe na cabeça-- e, sem usar nenhuma arma e sem que nenhum funcionário do correio notasse, desengataram os vagões de passageiros e partiram levando só os carros com o dinheiro.

    O bando parou o comboio 800 metros adiante, rendeu os cinco homens que guardavam o dinheiro e transferiu os 120 sacos para um veículo. Um crime perfeito em sua simplicidade.

    HERÓIS

    O assalto foi "o" evento midiático da Inglaterra em 1963. A opinião pública ficou fascinada por aqueles bandidos geniais e misteriosos. "Você tem de lembrar o contexto político da época para entender porque os assaltantes viraram heróis", disse Chris Pickard à Folha.

    "Estávamos em meio a um governo impopular e marcado por escândalos, e os ingleses, especialmente os mais jovens, vibraram com a história de um bando que roubou dinheiro do governo."

    Numa Inglaterra em meio ao conflito de gerações que culminaria no surgimento dos Beatles e da "Swinging London", os assaltantes viraram ícones pop.

    "Eu tinha 16 anos na época. Eles eram meus heróis", disse à Folha, depois da entrevista coletiva de Biggs, David Worrow, considerado o maior colecionador do mundo de memorabilia relacionada ao assalto. Worrow tem mais de 3.000 objetos em sua coleção, incluindo o espelho da casa onde os bandidos se esconderam. "Depois que a polícia saiu da casa, entrei lá e roubei o espelho. Aliás, não escreva que roubei, diga que tomei emprestado e ainda não devolvi", brinca.

    O profissionalismo demonstrado durante o assalto, no entanto, não se repetiu na hora de apagar as provas do crime.

    MONOPÓLIO

    Antes do golpe, o bando havia pernoitado em uma casa de fazenda abandonada. O plano era tocar fogo na casa logo após o golpe. Mas isso não aconteceu. Para piorar, os criminosos deixaram na casa diversos objetos com impressões digitais, incluindo peças do jogo "Monopólio".

    Dos 16 homens que participaram do assalto, só quatro usaram luvas. Esses nunca foram identificados. Ronnie Biggs foi traído por impressões digitais deixadas numa garrafa de molho para churrasco. Foi condenado a penas concomitantes de 25 e 30 anos. Se a prisão o tornou conhecido em todo o Reino Unido, sua fuga da cadeia o transformou num astro.

    No dia 7 de julho de 1965, depois de 19 meses de xadrez, Biggs escalou os muros da prisão Wandsworth usando uma escada de corda e fugiu numa van que o esperava do outro lado. Só voltaria à Inglaterra mais de 35 anos depois.

    A princípio, rumou para Paris, onde passou por uma cirurgia facial antes de voar para a Austrália, com novo rosto e novo nome, Terence Furminger. Mas não demorou para ser descoberto. Em 1970, cansado da perseguição da polícia australiana, seguiu para o Panamá de navio. De lá, foi para Caracas e, por fim, ao Rio de Janeiro, onde desembarcou no dia 10 de março.

    Em 1974, jornalistas ingleses revelaram que ele estava na cidade. Logo depois, ele foi preso no Rio pelo detetive Jack Slipper, da Scotland Yard, mas não foi extraditado porque a namorada, Raimunda de Castro, estava grávida.

    FILHO

    Michael (Mike) nasceu em agosto de 1974. O filho não só evitou a extradição de Ronnie mas o sustentou por um bom tempo depois que fez sucesso como um dos cantores mirins do grupo A Turma do Balão Mágico.

    "Muita gente diz que meu pai viveu no Brasil com o dinheiro do assalto, mas isso não é verdade", garante Mike. "Ele viveu do dinheiro que ganhei com os 12 milhões de álbuns que vendi e dos shows que eu fazia com o Balão Mágico."

    Ronald Biggs morou por mais de 30 anos no Rio. Passou a maior parte desse período em uma casa em Santa Teresa, onde recebia turistas e celebridades como os integrantes do grupo punk Sex Pistols e o ex-craque inglês Stanley Matthews. Os integrantes do Rolling Stones também o procuraram quando tocaram no Rio, em 1995. O pai de Keith Richards, que acompanhava a turnê, implorou ao filho que o levasse ao encontro.

    Biggs virou uma espécie de atração turística, uma parada obrigatória para artistas e celebridades em visita ao Rio. Até o paranormal Uri Geller, um israelense famoso por supostamente dobrar talheres com a força do pensamento, procurou Biggs com uma ideia --queria que ele o ajudasse em um quadro de ilusionismo, em que Geller faria um trem desaparecer. Biggs, na época com a perna engessada devido a um tombo, respondeu: "Vamos ver se você é bom mesmo, Uri: conserte minha perna agora!"

    REPUTAÇÃO

    Segundo o biógrafo de Biggs, ele sempre tentou evitar que sua presença no Brasil manchasse a reputação do país. "Era uma situação incômoda e ele entendia isso", diz Pickard. "Quando a princesa Diana visitou o Rio, jornalistas ingleses pediram a Ron que aparecesse em um evento, mas ele recusou."

    Em 1998, Biggs sofreu um derrame, que afetou sua fala. Foi o início de uma série de problemas médicos. Logo entrou em depressão. Em novembro de 2000, Mike encontrou o pai desacordado no banheiro, com os pulsos cortados.

    "Foi aí que ele decidiu voltar à Inglaterra e se entregar", afirma Pickard. "Ronnie estava falido, sem dinheiro, e sofria muito com o fato de seu tratamento estar custando tanto à família."
    Biggs vendeu os direitos de exclusividade da cobertura de sua rendição para o tabloide inglês "The Sun", por, diz-se, 20 mil libras. Na época, a imprensa britânica disse que Biggs havia se entregado porque queria voltar ao país que amava. Chris Pickard discorda: "Foi uma decisão financeira. Ron estaria perfeitamente feliz vivendo até o fim da vida no Brasil".

    Ronald Biggs ficou preso na Inglaterra de 2001 a 2009. Nesse tempo, sofreu diversos outros derrames. Acabou libertado devido à sua condição física.

    Ele não tem muito tempo de vida e sabe disso. "Só quero viver meus últimos dias em paz. A liberdade é o maior prêmio que recebi", disse, na coletiva. "Meu último desejo é que minhas cinzas sejam divididas entre Londres, Austrália [onde vive sua primeira mulher e dois filhos] e Rio de Janeiro."

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