• Ilustríssima

    Saturday, 20-Apr-2024 11:00:23 -03

    Filha de Ezra Pound luta para distanciar fascistas da imagem do pai

    TOM KINGTON
    DO "GUARDIAN", EM ALTO ADIGE, ITÁLIA

    16/01/2012 18h53

    O castelo italiano no qual o poeta Ezra Pound (1885-1972) se isolou nos anos 1950 para trabalhar sobre seu poema épico "Os Cantos" dificilmente poderia ser mais remoto, empoleirado sobre um penhasco íngreme, tendo como pano de fundo os picos nevados da fronteira austríaca.

    Reprodução
    O poeta norte-americano Ezra Pound, em foto sem data
    O poeta norte-americano Ezra Pound, em foto sem data

    Mais de meio século mais tarde, a filha de 86 anos de Ezra Pound ainda desfruta o isolamento dos nobres cômodos do castelo de Brunnenburg, revestidos de painéis de madeira e estantes de livros, onde ela lê o poema em voz alta para visitantes e reflete sobre a maneira incomum em que foi criada pelo poeta americano renegado.

    Mas a paz de Mary de Rachewiltz foi abalada pelo mundo soturno da política neofascista italiana e a repercussão de um incidente sangrento nas ruas antigas de Florença, em dezembro, que deixou dois imigrantes mortos.

    Indignada com a decisão do grupo fascista ascendente CasaPound de dotar-se do nome de seu pai em homenagem ao apoio dado pelo poeta ao ditador Benito Mussolini, Mari de Rachewiltz foi à justiça para tentar forçar a organização a abrir mão do nome.

    Ela intensificou seus esforços depois que um simpatizante do CasaPound matou dois ambulantes senegaleses a tiros e feriu três outros, antes de cometer suicídio.

    "A notícia me deixou chocada e envergonhada", ela disse ao "The Observer". "Os fascistas querem reivindicar Pound, mas não têm nada a ver com ele. São um incômodo, e tem que haver algo que eu possa fazer para impedi-los."

    BÍBLIA

    Andando até a escadaria espiralada de pedra do castelo, De Rachewiltz sobe até uma sala de trabalho que proporciona vistas deslumbrantes de um céu azul penetrante, paredões rochosos, o vinhedo da família e, muito abaixo, o vale.

    Ela própria uma poeta rematada, De Rachewiltz, no castelo, se cercou de objetos que foram de Ezra Pound, incluindo esculturas e cadernos velhos nos quais, usando tintas de cores diferentes, ele redigiu trechos de "Os Cantos", a obra histórica que é vista como um dos poemas mais importantes do século 20. De Rachewiltz a descreve como "minha bíblia".

    Sua devoção a seu carismático pai nunca se enfraqueceu, apesar de Pound e sua mãe, a violinista americana Olga Rudge, a terem entregado a um casal de camponeses de Aldo Adige para ser criada por eles.

    Antes do nascimento dela, em 1925, Pound tinha se radicado na Itália com sua esposa, depois de deixar seu rastro no cenário londrino da poesia, a caminho de virar presença constante na Rive Gauche parisiense, onde ajudou T.S. Eliot a editar "The Waste Land" e foi mentor de Ernest Hemingway, que tentou ensiná-lo a lutar boxe.

    Em contraste marcante com tudo isso, De Rachewiltz passou sua infância criando abelhas e pastoreando ovelhas, embora essas atividades fossem interrompidas por visitas ocasionais a seu pai e a amante dele, na residência que mantinham em Veneza.

    "A camponesa tirolesa ainda está entranhada em mim", falou De Rachewiltz, que se recorda de ter destroçado um violino que sua elegante mãe lhe dera. Seguiu-se um relacionamento tenso entre Olga Rudge e sua filha, que falava um dialeto italiano. "Acho que fui influenciada por meus pais adotivos, que provavelmente invejavam a 'dama de meias de seda' que vinha me buscar em casa", ela explicou.

    Com Pound ela formou um vínculo forte, estreitado nos momentos em que percorriam Veneza juntos, visitando livrarias ou indo de "vaporetto" (ônibus aquático) nadar no Lido. Mais tarde, Pound pediria a sua filha que vertesse para o italiano o poema que já começara a escrever, "Os Cantos".

    "Em 1943, no auge da guerra, quando eu estava de volta em Alto Adige para garantir minha segurança, Pound veio de Roma para assegurar-se de que eu estava bem", ela recorda. Durante essa visita ele finalmente revelou à filha que tinha uma esposa que vivia em Rapallo, na costa liguriana.

    ACOBERTAMENTO INTELECTUAL

    Nessa época Pound já era procurado pela justiça dos Estados Unidos, depois de ter endossado o fascismo de Mussolini e feito uma série de emissões radiofônicas --repletas de declarações de cunho antissemita-- para tentar persuadir os EUA a não participarem da guerra.

    Preso em 1945 por forças americanas e mantido por três semanas em uma jaula, onde deu sinais de colapso mental, Pound foi acusado de traição. Passou os 12 anos seguintes num hospital psiquiátrico nos EUA.

    Desde então, De Rachewiltz vem travando uma batalha vitalícia para diferenciar Pound, o poeta, de Pound, o fascista e antissemita. É por essa razão que é tão dolorosa para ela a ascensão do grupo CasaPound, que já conta com 5.000 integrantes.

    Ela rejeita a sugestão de que o endeusamento de Pound pela organização fascista seja merecido. "Pound apenas citou o que Mussolini dizia", explica. "Esta organização se esconde atrás do nome de Pound para ter acobertamento intelectual."

    "Pound cometeu erros, e precisamos recordar a parte boa que havia nele, assim como ele fez com outros. Ele se rendeu aos clichês antissemitas que eram comuns na Europa e nos EUA naquela época."

    Anos depois, Ezra Pound disse ao poeta americano (e judeu) Allen Ginsberg que o pior erro de sua vida foi seu "estúpido preconceito antissemita suburbano".

    Libertado pelo governo dos EUA em 1958, ele retornou à Itália, onde sua filha se casara com um egiptólogo italiano de origem russa, Boris de Rachewiltz. O casal tinha comprado o castelo de Brunnenburg, que estava em ruínas. "A reposição das janelas custou mais que a própria compra do castelo", recorda De Rachewiltz.

    JARDIM DE INFÂNCIA

    Pound foi viver no castelo para continuar a trabalhar sobre "Os Cantos", e sua mulher, Dorothy, o acompanhou. "Ela ficava em seu quarto, lendo Henry James", recorda De Rachewiltz. Mas, depois de anos vivendo num hospital psiquiátrico superaquecido, Pound não se adaptou à vida no castelo, cheio de correntes de ar, e retornou a Rapallo, onde Olga Rudge cuidou dele até sua morte, em 1972.

    Hoje De Rachewiltz percebe que a rivalidade que mantinha com sua mãe, ambas disputando o afeto de Ezra Pound, dificultou a relação entre elas. "Todas as pessoas que conheciam Pound o amavam", disse ela. "Quando ele escreveu 'orgulho, ciúme e possessividade- / três dores do inferno', estava escrevendo sobre todas nós, incluindo sua esposa. Cada uma de nós o queria para si mesma. Hoje releio as cartas de minha mãe e me dou conta de quanto ela me amava."

    Décadas mais tarde, cercada por sua família, De Rachewiltz ainda lê e escreve, fazendo pausas para almoçar pão e queijo com um cálice de vinho tinto de seus próprios vinhedos, seguidos por uma xícara de chá Earl Grei às 16h. Assistir a novelas na televisão é um prazer ocasional.

    Ela insiste que a ação judicial contra a CasaPound não vai prejudicar sua rotina. "Não quero encontrá-los", explicou. "Se Pound estivesse aqui, diria que eles precisam voltar para o jardim de infância."

    Tradução de CLARA ALLAIN.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024