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    Cientista político André Singer explica sua tese sobre o lulismo

    PAULO WERNECK
    EDITOR DA "ILUSTRISSÍMA"

    19/08/2012 07h00

    Chega às livrarias no final do mês o livro que consolida a teoria do cientista político André Singer sobre o "lulismo", expressão que ele cunhou em artigos e em sua tese de livre-docência, defendida em 2011, no departamento de política da Universidade de São Paulo.

    Em "Os Sentidos do Lulismo" (Companhia das Letras), Singer expõe, amparado por inúmeras tabelas e pesquisas, a versão brasileira de um fenômeno observado nos EUA dos anos 1930, em torno do presidente Roosevelt: o "realinhamento" do eleitorado, isto é, o rompimento de determinados setores com adesões históricas, substituindo lideranças de forma duradoura. Ou, como quer Singer no caso brasileiro, "definitiva".

    Além de professor da USP, Singer é jornalista --foi secretário de Redação da Folha-- e foi porta-voz de Lula na Presidência, de 2002 a 2007, de onde observou a guinada tanto do governo como da opinião pública entre 2005 e 2006, quando começa o fenômeno do lulismo --e eclode o escândalo do mensalão.

    "Os Sentidos do Lulismo" é, porém, o trabalho de um cientista social --por isso não espere as revelações e os bastidores que são a delícia das memórias de ex-membros de governos. Singer diz ter a intenção de, um dia, "fazer um depoimento, algo mais pessoal".

    Leia abaixo a íntegra da entrevista, concedida em sua casa, na Vila Madalena, em São Paulo, na qual comenta aspectos de seu trabalho e da política brasileira.

    *

    Folha - Embora não esteja no foco da análise, o livro mostra como o mensalão catalisou o antilulismo. O mensalão aglutina insatisfações?

    André Singer - Foi o ponto em que a classe média definitivamente se afastou do que depois veio a ser o lulismo. Esse é o momento em que o lulismo e o antilulismo se cristalizam. A minha hipótese é que houve um percurso algo silencioso, um pouco subterrâneo, de mudanças importantes, que ocorreram ao longo do primeiro mandato do ex-presidente Lula.

    Essas mudanças acabaram por cristalizar uma nova polarização política, que se expressou nas eleições de 2006. Se você pegar a curva de intenção de votos pelo Datafolha desde o começo de 2006, quando ainda as pessoas não estão muito ligadas na questão eleitoral, e for vendo como isso transcorre ao longo de 2006, percebe que a configuração já é outra, bem diferente daquela que tinha se dado em 2002. Houve esse deslocamento de apoios: de um lado, os eleitores mais pobres se aproximando do Lula, e, de outro, os eleitores de renda mais alta se afastando.

    Essa clivagem não tinha ocorrido no Brasil desde 1989, quando aconteceu no sentido inverso: Lula ganhou no segundo turno em todas a faixas de renda, menos na mais baixa, e Collor perdeu em todas, menos na mais baixa, o que mostra duas coisas. Em primeiro lugar, como esse eleitorado é decisivo.

    Há uma certa percepção distorcida, como se a classe média no Brasil fosse maior do que efetivamente é. Se você usar critérios de mercado, que não são os melhores, mas são os que estão disponíveis para falar de classes A e B, o índice nunca passa de 15% no Brasil, está entre 10 e 15%. É pouca gente. No entanto, essas são as pessoas que leem jornal, leem revista, e isso cria uma percepção um pouco alterada da realidade.

    Esse eleitorado mais pobre é muito decisivo continuava decisivo em 2006 e, a meu ver, continua sendo muito decisivo em 2012. Os 50% que estão em torno de uma renda familiar de até dois salários mínimos, o que é bem pouco. Então eu acho que em 2006 se cristaliza essa mudança que eu imagino que tenha ocorrido em 2005.

    Isso mostra como esse eleitorado mais pobre é muito mais importante do que se costuma pensar. Se você cruzar o apoio ao governo Lula com a renda familiar, percebe que, em 2005, com a divulgação das notícias do mensalão, começa a haver perda de apoio nos segmentos de classe média, a partir de cinco salários mínimos de renda familiar. Minha hipótese é que essa perda de apoio, vou usar uma palavra um pouco forte, pois na história as coisas acabam por mudar, é definitiva. Eu creio que seja uma mudança de longo prazo.

    É um erro a teoria de que a classe média forma opinião da baixa?

    Esse é um tema muito interessante, porque aí existem duas coisas. Existem, de certo ponto de vista, um equívoco, mas eu diria até que é mais importante uma mudança que eu penso que é estrutural. Por isso é que eu pus o título meio provocativo na introdução, "Alguns temas da questão setentrional", que é uma paródia daquele ensaio clássico do [Antonio] Gramsci ["Alguns temas da questão meridional"].

    Aí existe um equívoco, de que a classe média formata a opinião de pessoas que têm menos renda, menos escolaridade, menos informação. Mas isso é menos importante que uma mudança estrutural que aconteceu: havia um grande bloco, formado pela adesão, sobretudo no Nordeste, dos eleitores mais pobres do interior, ao voto conservador.

    Isso é uma tradição política que vem de muito longe. Se você observar, já no período 1945-64 essas são regiões que votam sistematicamente na UDN e no PSD [partidos conservadores], não votam no PTB [partido de Getúlio Vargas], só no final do período que o PTB começa a chegar no Nordeste, primeiro nas regiões mais urbanizadas.

    Aí vem o golpe militar. Se você observar, vai ver que a Arena sempre ganha as eleições nessas regiões, até o final do regime militar. Ao terminar a ditadura, o partido que emerge com mais força da antiga Arena, que é o PFL, tem muita reserva de votos, até o governo Lula, a ponto de o PFL, numa sobrevivência forte desse conservadorismo, atravessar o regime militar e chegar a ter uma aspiração plausível de disputar a Presidência República em nome do bloco comandado pelo FHC.

    Se não fosse a morte de Luís Eduardo Magalhães, possivelmente ele fosse candidato. As pessoas esquecem, em face do que está acontecendo com o Democratas, que o PFL teve muita força nos anos 90. Acontece que o lulismo rompeu esse bloco, rompeu com isso aí.

    Rompeu ou se apropriou de certos mecanismos de comunicação direta do líder com a massa? Em muitos momentos, lembra figuras como Antonio Carlos Magalhães, no que se refere à forma de se comunicar com o povo, sem mediação.

    Eu diria que quebrou. Quebrou pelo seguinte: pela primeira vez, esse setor do eleitorado está votando numa opção, vamos chamar assim, popular. E isso, ao longo da história do Brasil, que eu saiba, nunca aconteceu. Estudos feitos sobre o Brasil entre 1945 e 64 mostram que, se não tivesse havido o golpe militar, provavelmente ia acontecer isso com o PTB, ele ia chegar lá.

    É até possível que uma das razões que tenha precipitado o golpe tenha sido essa. A ascensão forte do PTB, a chegada do PTB em regiões onde este tipo de opção, vamos chamar assim de popular, nunca tinha chegado. Olhando historicamente, é uma quebra enorme. Agora, o que caracteriza a sua pergunta sobre comunicação direta da liderança com uma determinada massa, ou determinados tipos de política que podem ter favorecido esta mudança, como é o caso do Bolsa Família, é uma pergunta que diz respeito às características do lulismo.

    Acho que há uma mudança muito nítida e importante, e boa parte do que tento mostrar no livro é isso. Independentemente do juízo de valor que se faça, se isso é bom, se isso é ruim, é importante notar que há uma mudança estrutural. Esses eleitores se realinharam, e esse realinhamento define um novo período da política brasileira.

    Quanto à questão da comunicação direta, eu acho que existe, ou seja, o ex-presidente Lula é um grande comunicador popular, o fato de ter origem no Nordeste, de ter sido o primeiro presidente que tenha passado pela experiência direta da miséria brasileira não é algo de menor importância, é algo significativo.

    Ele se comunica a partir de uma experiência que eu diria que a enorme parte dos políticos brasileiros nunca teve. Essa comunicação por via de uma experiência por parte de alguém que sabe se comunicar não me parece um elemento menor. Mas ele evidentemente não é o único, ou seca, não é um artifício de comunicação, retórico.

    Existe um elemento de comunicação também, mas ele não está solto, não está desvinculado. Porque eu tento mostrar com dados que as políticas são efetivas, têm resultados efetivos, palpáveis. Quantificar esses resultados, chegar a uma proporção adequada para entender o significado disso é o esforço que eu faço, e admito que é assunto para se debatido. Seja como for, acho que consegui demonstrar que há bases materiais, do contrário pode parece que é um mero efeito de retórica. A meu ver uma parte errada da crítica que se faz ao populismo -não estou defendendo o populismo- mas da análise equivocada que se faz ao populismo é dizer que é tudo um efeito de falsa mágica. Como se houvesse uma enganação.

    Existe a tentativa de outros partidos para tentar se apropriar de políticas lulistas?

    Minha hipóteses é que, enquanto durar o lulismo, que entendo como a expressão desse realinhamento eletoral, que, se eu estiver correto, tenderá a marcar uma era no Brasil, enquanto isso durar vai haver tentativas de apropriação que ficam muito nítidas na criação do PSD. O PSD é a demonstração, a meu ver, de que eleitoralmente não dá para ficar contra essas políticas. Então eles precisavam fundar um novo partido para ficar no meio, para ficar numa posição parecida com a do PMDB, que pode apoiar e pode também fazer alianças com o outro lado, a depender da conjuntura, mas que não fica numa posição definida.

    O PSD precisa ficar numa situação em que eles evitem a marca de serem contra essas políticas, porque quem é contra não ganha eleição. Enquanto o lulismo durar, esse tipo de movimento vai acontecer. O que significa dizer que algumas dessas políticas, como o Bolsa Família, terão que ser mantidas. Politicamente, não poderão ser removidas, porque o custo eleitoral seria de um tamanho impagável por qualquer força que tenha aspirações majoritárias. Por isso é que eu acho que a mudança que ocorreu é importante, porque ela tende a ter durabilidade.

    O PSD encarna aquilo que o cientista político Marcos Nobre chama de peemedebismo, uma força que se impõe na política brasileira pela lógica da adesão aos governos e do eventual bloqueio de políticas. O seu livro passa ao largo do PMDB, não está no centro do livro.

    De fato ele não está, mas eu tento discutir essa tese do Marcos Nobre, ainda de maneira rápida, porque quando ele escreveu os artigos em que defende essa tese eu já estava com parte do livro escrita e não tinha condições de mudar. A tese dele é interessante, merece ser considerada, mas não acho que o PMDB seja o elemento central, que caracteriza a política brasileira. Esse elemento existe, esse partido que fica no meio, que pode estar aqui, pode estar ali, que tem um compromisso programático baixo, que permite esse tipo de oscilação, que é o que ele chama de peemedebismo.

    O lulismo provocou uma repolarização da política brasileira, essa é a diferença entre a análise dele e a minha. Acho que não está havendo nem essa homogenização, nem essa pasteurização completa da política brasileira. Reconheço que essa tese é um pouco difícil de demonstrar, mas penso que houve, em função desse movimento de ascensão social, uma reação muito forte da classe média. Isso é um fenômeno social de proporções significativas. Mas o movimento a meu ver tem raízes nessa mudança que o lulismo está trazendo para o Brasil.

    Eu não esperava, mas vejo acontecer essa enorme reação da classe média brasileira contra isso, o que trouxe à tona um aspecto de conservadorismo arraigado. Ou seja, a classe média está, nesse caso, propriamente reagindo. Quando você olha para as estatísticas eleitorais, você observa esse fenômeno. Isso já está acontecendo agora, repetidamente. O PT é bem votado nas camadas mais pobres e é mal votado nas classes médias, considerando classe média um rol extenso, acima de cinco salários de renda familiar. Isso é um tipo de polarização que não era frequente no Brasil, e por isso eu afirmo que não estamos num período de peemedemização. Há uma polarização e essa polarização é significativa.

    O que a torna pouco visível é que há uma decisão do projeto lulista de não radicalizar. Isso é parte central do projeto: que não haja radicalização política. Então o governo se empenha em não haver radicalização política, e até a própria oposição, ainda que haja alguns momentos nuançados nesse percurso, ao também não está apostando numa radicalização. A própria formação do PSD é exemplo disso. O esvaziamento do atual DEM e formação do PSD é uma opção pela não radicalização.

    Mas, se não radicalizar parece ser uma opção dos atores políticos, na verdade isso está encobrindo uma polarização significativa, que faz com que as opções PT e PSDB hoje não sejam a mesma coisa. Portanto me parece errado falar em pasteurização, peemedebização e homogenização, ainda que eu reconheça que o PMDB tem um papel. Eu tento mostrar que o PMDB foi incorporado nessa aliança mais recente, que elegeu a Dilma, como uma espécie de Poder Moderador que ele está desempenhando de maneira bem consciente.

    O que pensa da crítica ao lulismo por ter desmantelado sindicatos?

    O lulismo é uma opção de fazer essas mudanças de maneira pactuada. Por isso, falo em pacto conservador, que implica um preço a pagar: as mudanças serão bem lentas. Todo o bloco político diretamente vinculado ao lulismo ou influenciado por ele sofre a repercussão dessa opção. Há uma espécie de rebaixamento do antigo radicalismo do PT e de todas as suas áreas de influência, quem sabe até os próprios sindicatos.

    Tenho dúvida, mas não sou especialista no assunto, é se houve um movimento de cooptação que, por assim dizer, desdentou os sindicatos. Um exemplo destes dias é a posição da CUT em relação à greve dos funcionários públicos. A CUT está se comportando, segundo observo, como uma central sindical. Não é parte do governo, mas do movimento sindical, e está cumprindo sua função de expressar interesses dos trabalhadores.

    Chama a atenção no livro que você procura fundamentar o famoso bordão de Lula, "nunca na história desse país", arriscando uma interpretação mais profunda para o que parece mero lance retórico.

    O que tento fazer ali, e o livro todo tem essa intenção, é explicar. A minha principal aspiração é fornecer um hipótese explicativa. Essa frase, que irrita muito uma parte da opinião pública, tem a ver com isso: ele não está falando com os chamado formadores de opinião, mas com pessoas para as quais de fato isso faz sentido.

    Não que essas políticas tenham começado rigorosamente no governo Lula, mas elas deram um salto de qualidade de tal ordem que, para esse setor mais carente da sociedade, faz sentido a ideia de que agora, pela primeira vez, o Estado está olhando para mim, está tentando me amparar.

    A experiência no Planalto trouxe mais embaraços ou clareza para enxergar as coisas?

    O livro foi feito em duas etapas, muito separadas. Primeiro, quando eu estava no governo, nunca imaginei o que ia escrever o que acabei escrevendo, porque estava lá na condição de jornalista, não de cientista político. E na verdade a atividade de governo é de um tal grau de envolvimento que não dava tempo de refletir. Tomei notas para mim mesmo, mas nada que envolvesse algum grau de reflexão e leitura. E eu também tenho por limitação pessoal essa incapacidade fazer duas coisas ao mesmo tempo.

    Fiquei mergulhado na coisa do governo e, quando saí, em maio de 2007, voltei para São Paulo, reassumi as aulas na USP e comecei a pensar o que ia pesquisar, pensei que estava muito interessado em ver o que aconteceu. E fiz um percurso quase praticamente do zero, desde olhar os dados eleitorais, fazer leituras. Num certo momento, relendo o "18 Brumário" de Marx, me veio essa ideia: eu acho que o que aconteceu foi um tipo de configuração que lembra o apoio dos camponeses ao Luís Bonaparte.

    Tudo isso aconteceu depois, não foi durante. Eu diria para você que a resposta é dos dois lados: acho que ter estado lá me ajudou, porque eu comecei a me lembrar de coisas tinham acontecido, e acho que ter visto aquilo acontecer no dia a dia, quando fui reconstruir, tenho a impressão que me ajudou. Por outro lado, sempre fico muito temeroso de estar sendo levado pelo meu desejo.

    Ou seja, como obviamente fiz parte do governo e o defendi, fico sempre me perguntando de novo, de novo e de novo, se não estou me autoenganando. Isso sempre me traz certa dúvida com a qual eu tive que lidar. Eu até coloco isso no livro. Eu me dei conta de que o que eu estava fazendo envolvia um risco.

    Você teme que o livro seja percebido como alicerce teórico do governo, sem independência intelectual?

    Temo, pois acho que seria uma forma de desqualificar o trabalho. Embora eu possa estar equivocado em tudo, desde as premissas até as conclusões, passando pelos argumentos, julgo que fiz um esforço intelectual honesto para demonstrar aquilo que estava vendo.

    Estou comprometido com um tipo de independência crítica que é a contribuição que os intelectuais podem e devem dar. Gostaria que meu trabalho fosse lido dessa forma, que fosse objetado e contestado, mas com base na argumentação interna e nas evidências empíricas que proponho, e não em uma afirmação desse tipo, que pode simplesmente desqualificar.

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