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    Cientista de Harvard vê humanidade mestiça

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    10/03/2013 05h40

    Edward O. Wilson, pai da sociobiologia, causa furor entre cientistas ao rejeitar teoria da seleção de parentesco, dizendo, em "A Conquista Social da Terra", que sucesso evolutivo de seres sociais se deve a grupos coesos. Para professor de Harvard, miscigenação vai levar a diferenças cada vez menores entre países.

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    Para alguém que já foi fisicamente atacado como suposto baluarte do racismo e do sexismo, o biólogo americano Edward Osborne Wilson, 83, tem uma visão do futuro da evolução humana que provavelmente provocaria calafrios na direita mais raivosa de seu país. "Vai ser um processo irreversível, como misturar café com leite", compara ele. As cores dos líquidos usados na metáfora, a propósito, não são acidentais.

    "Vamos homogeneizar os países em termos raciais. Isso não significa que a diversidade genética vai desaparecer. Pelo contrário: teremos uma imensa variedade, mas as diferenças entre os países vão se tornar cada vez menores. A diversidade que vemos nas ruas de Nova York ou do Rio de Janeiro hoje será a regra em muitos outros lugares. É um cenário que me atrai muito --até porque não temos como lutar contra ele."

    Decano dos naturalistas e entomólogos (especialistas em insetos) dos Estados Unidos e professor emérito da Universidade Harvard, Wilson é um dos maiores especialistas do mundo nas sociedades formadas pelas formigas. O estudo dos insetos sociais o inspirou a usar a teoria da evolução como chave para entender o comportamento de outro bicho social por excelência --o homem-- em clássicos como "Sociobiology" (sociobiologia), de 1975, e "On Human Nature" ("Da Natureza Humana"), de 1979, obras que o colocaram em apuros com a esquerda.

    Ele e seus colegas eram acusados de apresentar fenômenos desagradáveis (a guerra e a xenofobia, por exemplo, também presentes entre as formigas) como meras consequências da luta pela propagação de genes característica da seleção natural. Para os oponentes do grupo de Wilson, classificar tais fenômenos como parte de um processo "natural" era equivalente a afirmar que não se devia lutar contra eles.

    No episódio mais famoso da contenda, uma ativista derramou um jarro de água gelada na cabeça de Wilson durante sua conferência na reunião da Associação Americana para o Progresso da Ciência, em 1978. O pesquisador diz que a oposição agressiva às suas ideias já não existe "há mais de 20 anos". "Na época, as pessoas chegavam a dizer que não havia natureza humana de origem biológica. Pouquíssima gente ainda faz isso hoje."

    Se essa briga ficou no passado --os biólogos das gerações seguintes parecem ter convencido muita gente de que explicar um fenômeno não é o mesmo que justificá-lo--, Wilson continua comprando outras. A mais recente se desenrola em torno do livro "A Conquista Social da Terra" [trad. Ivo Korytowski, Companhia das Letras, 392 págs., R$ 54], obra do biólogo que acaba de chegar ao Brasil e sobre a qual ele conversou por telefone com a Folha.

    No livro, Wilson ataca uma das ideias mais caras à maioria dos biólogos evolucionistas modernos, a teoria da seleção de parentesco, e questiona sua importância para a compreensão das origens de seres altamente sociais --como abelhas, formigas e gente.
    Grosso modo, a seleção de parentesco pode ser definida como uma aplicação à teoria evolucionista da lógica do nepotismo. Os seres vivos que se reproduzem por meio do sexo compartilham mais genes com parentes próximos do que com completos desconhecidos --50% de compartilhamento entre irmãos, por exemplo.

    Portanto faz muito mais sentido cooperar com a parentela, e mesmo fazer sacrifícios por ela, quando se considera que ganha o jogo evolutivo quem conseguir passar seus genes para a geração seguinte. A rigor, não faz tanta diferença em que corpos estão esses genes: matematicamente, um sujeito tem o mesmo sucesso evolutivo se deixar para a posteridade dois filhos ou quatro sobrinhos saudáveis.

    TEORIA

    Ou, ao menos, assim reza a teoria. Na área de especialidade de Wilson, os insetos sociais, e em especial as formigas, a visão mais ortodoxa (apoiada pelo entomólogo durante décadas) dizia que a seleção de parentesco teria sido crucial para o surgimento de formigueiros e colmeias com centenas de milhares de indivíduos. As operárias, todas irmãs, teriam delegado seu potencial reprodutivo à rainha-mãe em nome da multiplicação da parentela.

    Considerando que, mesmo sem se reproduzir diretamente, as operárias conseguem uma gigantesca capacidade de replicação de seus genes por meio desse método --com inúmeras cópias de seu DNA distribuídas pelos corpos dos membros da colmeia--, muitos pesquisadores acreditam que a seleção de parentesco teria sido suficiente para transformar os formigueiros e as colmeias nas entidades coesas e bem azeitadas que conhecemos hoje.

    O sistema ainda impulsionaria a divisão de trabalho, com grupos não apenas de operárias mas também de babás, soldadas etc. Não é à toa que os insetos sociais se tornaram os animais dominantes dos ecossistemas terrestres --calcula-se que, na Amazônia, por exemplo, a massa somada das formigas seja superior à massa de todos os vertebrados juntos, mesmo com a diferença de tamanho individual.

    Agora, porém, o biólogo de Harvard diz que essa é a abordagem errada do problema. Modelos matemáticos, desenvolvidos por seus colaboradores Martin Nowak e Corina Tarnita, indicam que só o empurrãozinho do parentesco não seria suficiente para impulsionar o desenvolvimento das sociedades de insetos.

    É mais produtivo, argumenta ele, pensar nas colônias como "superorganismos": as miríades de operárias estariam mais para "células" de um corpo único cuja cabeça seria a rainha --ou seriam, no máximo, "escravas robóticas" dela. Em vez de seleção de parentesco, estaria acontecendo seleção de grupo, na qual a competição seria entre formigueiros ou colmeias como um todo, levando o grupo de maior sucesso a dominar geneticamente a população da espécie na geração seguinte.

    Um processo parecido, aliás, também valeria para seres humanos, diz Wilson: tal como os insetos sociais, também criamos grupos em que várias gerações convivem no mesmo "ninho", praticamos o altruísmo dentro do bando (temperado, claro, por uma proporção variável de egoístas) e a competição fora dele. E, no longo prazo, grupos com mais altruístas sobrepujam, do ponto de vista reprodutivo, os que têm mais egoístas.

    APOSTASIA

    Outros czares da biologia evolutiva, como o britânico Richard Dawkins e o americano Robert Trivers, não reagiram lá muito bem à apostasia de Wilson. Dawkins, em especial, foi fiel escudeiro de William Hamilton (1936-2000), britânico que lançou as bases matemáticas da seleção de parentesco --seu conceito do "gene egoísta" deve muito a Hamilton.

    "Isso é normal, a teoria é antiga e muitas carreiras foram construídas em cima dela", minimiza o entomólogo. "Creio que foi em 1921 que mais de cem físicos assinaram uma carta dizendo que Einstein e sua teoria da relatividade estavam errados. É o que sempre acontece quando alguém propõe o que chamamos, em ciência, de uma mudança de paradigma. Nem por isso Einstein deixou de estar certo." O paralelo, ao menos nos números, faz sentido: cerca de 130 pesos-pesados da biologia publicaram uma carta na revista científica "Nature" em 2011 apresentando seu repúdio às novas ideias de Wilson.

    Enquanto o debate continua, o pesquisador afirma que, depois de tentar resolver o enigma biológico dos insetos sociais, gostaria de estudar como, no caso dos humanos, funciona a influência mútua entre genes e cultura. Já há alguns casos bem estudados dessa dança genético-cultural --a domesticação de bovinos é a responsável por alguns povos do mundo terem genes funcionais ligados à digestão de leite na idade adulta--, mas Wilson diz suspeitar de que haja muitos outros exemplos do fenômeno em ação.

    Daí seu fascínio com o mundo miscigenado do futuro próximo, afirma. A convivência de diversidade genética e diversidade cultural "deve ter um impacto fantástico na criatividade humana", diz o biólogo.

    Isso porque é um bocado provável, segundo Wilson, que as diferentes culturas humanas também tenham tido um impacto sobre como a variedade de comportamentos e personalidades evoluiu biologicamente. Um caldeirão cultural mais intenso, portanto, também teria impacto sobre essa dimensão, em parte genética, em parte aprendida. "Em vez de tentar uniformizar as coisas, os Estados Unidos, que hoje são um país muito diverso etnicamente, deveriam ter orgulho disso."

    VELHO SUL

    Muita gente considera Wilson, nascido no Estado do Alabama, como o arquétipo (e talvez um dos últimos exemplares sobreviventes) do chamado "cavalheiro do Sul", representante da cultura de gentileza e cortesia tradicionalmente cultivada nessa região dos EUA. Mas não é esse ponto que ele ressalta quando pergunto sobre a influência que o "velho Sul" ainda exerce sobre sua vida, mesmo depois de tantos anos radicado na Costa Leste.

    "Sabe, crescendo no Sul como eu cresci, minha educação foi muito fraca", conta o professor. "Só fui aprender ciência realmente quando entrei na universidade. Ao mesmo tempo, porém, eu tinha uma vantagem enorme, que era a de estar em contato com um ambiente natural fantástico. E foi esse contato que me transformou num naturalista antes mesmo que aprendesse ciência, o contato que despertou meu interesse em insetos e outros animais."

    Esse caso juvenil de amor com a biodiversidade é o tema do próximo livro do entomólogo, "Letters to a Young Scientist" ("Cartas a um Jovem Cientista"), que será lançado no dia 15 de abril nos Estados Unidos. "Acho que o mesmo tipo de inspiração que tive está ao alcance de muitos jovens do Brasil, que também estão cercados por ambientes incríveis e, espero, também podem vir a se tornar cientistas", afirma Wilson.

    É claro que tal despertar de vocações não adiantará muito se a perda de biodiversidade continuar no ritmo atual, um tema abordado de modo apaixonado em vários dos livros do pesquisador, como "O Futuro da Vida" (Campus) e "A Criação" (Companhia das Letras).

    "A situação continua piorando, mas a um ritmo que está diminuindo", afirma o cientista. "O que vejo com otimismo é que o conhecimento do público geral sobre o problema no mundo todo nunca foi tão grande, e há sinais de melhora, como o controle do desmatamento na Amazônia. Temo que as ações sejam muito poucas e que venham tarde demais. Mas é preciso continuar tentando."

    REINALDO JOSE LOPES, 34, é jornalista, autor de "Além de Darwin" (Globo) e assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha

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