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    O tempo fraturado de Eric Hobsbawm

    NICK COHEN
    DO "OBSERVER"

    07/04/2013 08h06

    Quando você define um pensador como "comunista conservador", parece estar fazendo uma piada ruim. No entanto, para compreender o peculiar gênio de Eric Hobsbawm (1917-2012), é preciso vê-lo exatamente dessa forma, e aceitar que isso não envolve contradição. Hobsbawm manteve sua lealdade ao desastre soviético até o fim.

    Mas muito antes que o Muro de Berlim caísse, ele havia dito à esquerda britânica que o socialismo estava morto e emprestado sua formidável autoridade ao movimento que resultou mais tarde em Tony Blair. Teoricamente, ele acreditava na derrubada do Estado britânico. Na prática, aceitou a mais refinada das honrarias monárquicas, a Order of the Companions of Honour, diretamente das mãos da rainha.

    "Tempos Fraturados: Cultura e Sociedade no Século XX" mostra esse revolucionário tradicionalista em sua melhor forma. É um relato do colapso da cultura da alta burguesia do século 19 e um estudo das ruínas que ela deixou no século 20. Ele amava as duas coisas, mas compreendia por que não poderiam perdurar. Todas as certezas do século 19 provaram-se mentirosas mais tarde. Em lugar de progresso, houve guerras totais e genocídios que expuseram a farsa do otimismo liberal. Em lugar de uma ciência racional, veio a mecânica quântica, que ninguém, nem mesmo os físicos quânticos, conseguia entender.

    JBS Haldane, cientista e camarada de Hobsbawm na esquerda marxista, um dos personagens celebrados nas páginas do livro, suspeitava já em 1927 que o universo seria não só "mais esquisito do que supomos mas mais esquisito do que somos capazes de supor" --e suas suspeitas foram confirmadas. Acima de tudo, a cultura do consumo de massa e a democracia solaparam o bom gosto e as certezas das velhas elites.

    Hobsbawm não imaginava que essas duas coisas pudessem retornar. Nenhum historiador era mais competente no uso de um fato decisivo para tornar memoráveis os seus argumentos. Ao defender sua teoria de que a música clássica é uma arte de museu, ele escreve que "das 60 óperas encenadas pela Ópera Estatal de Viena em 1996/7, apenas uma foi obra de um compositor nascido no século 20".

    Como essa estatística implica, a "revolta contra a tradição" representada por aquilo que definimos frouxamente como movimento modernista, ainda que ele mesmo já esteja muito velho, fracassou. As artes artesanais da música clássica, pintura, escultura, jazz e, na opinião de Hobsbawm, também o rock, no século 21 se destinam a audiências envelhecidas.

    Nenhuma das desculpas de Hobsbawm para o comunismo, aquela outra revolta contra todas as tradições, aparece no seu volume póstumo. Em lugar disso, ele contém uma comovente reflexão sobre a vida de Karl Kraus, escritor vienense que anteviu os horrores do século 20 antes de qualquer outra pessoa e satirizou o império Habsburgo decadente com brilhante crueldade. Em sociedades semilivres como a Áustria de Francisco José ou a Rússia de Brezhnev, é possível satirizar e protestar. Mas, sobre Hitler, Kraus escreveu: "Quanto ao tema do nacional-socialismo, nada me ocorre", e o mesmo silêncio satírico se aplica à União Soviética stalinista. "Até hoje", reconhece o historiador, veterano defensor do comunismo, "ninguém zomba dela, nem em retrospecto".

    Mas o pesar pela morte de suas certezas perdura. Na introdução que escreveu pouco antes de morrer, Hobsbawm declara que "contemplo, sem guia e sem mapa, com preocupação e perplexidade maiores do que recordo em qualquer momento de uma longa vida, um futuro irreconhecível". Mesmo? As perturbações do mundo são maiores hoje do que nas batalhas entre ditadores dos anos 30 e 40? Ou durante a era da "destruição mutuamente assegurada" na guerra fria? Não acredito que isso seja apenas um caso de pessimismo causado pela idade.

    O economista norte-americano Brad de Long foi o primeiro a apontar que, enquanto a União Soviética sobreviveu, Hobsbawm acreditava que a humanidade de alguma forma estivesse progredindo, como cabia a um marxista. Depois que ela se foi, o desespero tomou seus escritos. Isso me parece verdade. Meu avô foi o mentor de Hobsbawm no Partido Comunista britânico. Ele morreu antes que a União Soviética desaparecesse, mas percebi que seus amigos todos desistiram depois que ela se foi.

    Há outro problema. "Fractured Times" não é um livro plenamente estruturado, mas uma coleção de ensaios publicados dos anos 60 em diante. Eu gostaria que Hobsbawm tivesse tido tempo para reconsiderar algumas de suas opiniões antes de morrer. Ele repete uma de suas observações mais brilhantes e mordazes: "Uma das questões mais obscuras da História é porque os estilistas de moda, uma categoria notoriamente não analítica, às vezes conseguem antecipar aquilo que está por vir com mais sucesso que os profissionais da previsão".

    Isso pode ter sido verdade no passado. Enquanto a ordem do século 19 seguia adiante como se nada pudesse mudar, artistas, entre os quais estilistas de moda, ocasionalmente antecipavam em seu trabalho o caos vindouro. Mas será que ainda são capazes disso?

    Um dos muitos traços surpreendentes da grande crise de nossa era é a falta de interesse dos artistas e escritores pela turbulenta e voraz City que estava se arremessando ao desastre bem diante de seus olhos. A indiferença deles era tamanha que a BBC, depois do crash, teve de reviver "Little Dorrit", a história de uma crise bancária narrada por Dickens em 1855, enquanto o National Theatre teve de se satisfazer com Sir David Hare percorrendo o palco e tentando explicar o que houve de errado.

    Que eu teria amado saber o que Hobsbawm pensava sobre o silêncio dos artistas é uma das muitas, muitas razões para que sua morte, no ano passado, tenha representado tamanha perda para a cultura britânica e --por que ele sempre foi internacionalista-- para a cultura do mundo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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