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    Como a sífilis varreu o mundo

    SARAH DUNANT
    DO "GUARDIAN"

    21/05/2013 15h43

    A história não revela quem transmitiu sífilis a Cesare Borgia, mas sabemos quando e onde ele contraiu a doença. No verão de 1497, ele era um cardeal de 22 anos enviado por seu pai, o papa Alexandre 6º, como representante do pontífice à coroação do rei de Nápoles, e a fim de negociar um casamento real para sua irmã, Lucrezia. Nápoles era uma cidade rica em conventos e bordéis (uma justaposição fértil para o imaginário masculino da renascença), mas também estava enfrentando uma crise de saúde.

    Dois anos antes, um exército invasor francês que incluía soldados mercenários retornados do novo mundo havia passado algum tempo na cidade para celebrar sua vitória, e ao partir carregou de volta ao seu país algo de inesperado e letal.

    Depois de concluir suas tarefas, Cesare foi conhecer a cidade. Maquiavel, seu contemporâneo e um homem cujo humor era tão aguçado quanto sua sabedoria política, nos deixou um relato assustador sobre uma cópula com uma prostituta que, ao acender a luz mais tarde, ele descobriu ser uma mulher horrenda, careca e desdentada, feia a ponto de levá-lo a vomitar em cima dela.

    Dada a posição elevada de Cesare, as mulheres que ele selecionava deviam certamente ser mais atraentes, mas a doença que lhe transmitiram (e da qual sofriam) se provaria cruel. Primeiro ele desenvolveu um cancro no pênis, depois dores paralisantes em todo o corpo e por fim pústulas irritantes e supuradas no rosto e torso.

    Felizmente para ele e para a história, o médico pessoal de Borgia, Gaspar Torella, era um estudioso da medicina e desenvolveu ávido interesse por essa nova e chocante doença, e usou o paciente (sob o pseudônimo "Niccolò, o jovem"), para registrar os sintomas e as tentativas de cura. Ao longo dos anos seguintes, Torella e outros estudiosos registraram a ascensão incontrolável de uma doença que levava homens crescidos a gritar de agonia enquanto sua carne era consumida, às vezes até o osso.

    Ainda recordo o momento, quando estava pesquisando na Biblioteca do Museu Britânico, em que encontrei detalhes sobre o tratado de Torella, em um livro de ensaios sobre a sífilis. Não existe nada tão emocionante, para um escritor de ficção histórica, quanto uma pesquisa que revele novos panoramas, e a história de como essa praga sexual varreu a Europa na década de 1490 foi um dos pontos de inflexão para "Blood and Beauty", romance que eu estava escrevendo sobre a ascensão e queda da dinastia Borgia.

    Quando Cesare sentiu a primeira comichão, a doença francesa, como era então conhecida, já se havia espalhado por boa parte da Europa. Naquele mesmo ano, o conselho municipal de Edimburgo promulgou um édito ordenando o fechamento dos bordéis, enquanto na Universidade de Ferrara, Itália, os estudiosos convocaram um debate de emergência para tentar descobrir o que estava acontecendo. Àquela altura, o método de contágio já era bastante evidente.

    "Os homens apanham a doença quando fazem com as mulheres em suas vulvas", escreveu o médico da corte de Ferrara, sem meias medidas (não existe menção a transmissão homossexual, ainda que "sodomia", como a homossexualidade era então conhecida, não fosse tema de debate aberto). As teorias que cercavam a doença eram tão dramáticas quanto seus sintomas: uma conjunção astrológica de planetas, os cancros de Jó, punição de um Deus iracundo pela fornicação ou, como já havia quem sugerisse ainda então, uma praga inteiramente nova trazida do novo mundo pelos soldados de Colombo e fermentada nos ventres das prostitutas napolitanas.

    Qualquer que fosse a causa, o horror e agonia eram incontestáveis. "Tão cruel, tão perturbadora, tão repulsiva que até agora nada de mais terrível ou revoltante era conhecido na terra", diz o humanista alemão Joseph Grunpeck, que ao cair vítima da doença lamentou que "a ferida em minha glândula priápica inchou tanto que eu mal conseguia circundar o órgão com as duas mãos". Enquanto isso, o pintor Albrecht Dürer, que mais tarde usaria imagens de sofrimento como essas em suas xilogravuras de propaganda contra a Igreja Católica, escrevia que "Deus me poupe da doença francesa. Não conheço nada que me cause maior medo... Quase todos os homens sofrem dela e ela corrói tantos deles a tal ponto que morrem".

    O nome sífilis surgiu na metade do século 16 por conta de um poema de um estudioso renascentista; o herói de um poema, Syphillus, causa a ira do deus Sol e é infectado como punição. Fora do plano poético, a maior parte da culpa foi atribuída à prostituição, ainda que na realidade coubesse à testosterona. Os homens infectavam as prostitutas que depois passavam a doença ao próximo cliente, que em seguida infectava outra mulher, em uma espiral mortífera. Os maridos infiéis infectavam suas mulheres, que ocasionalmente infectavam os filhos, ainda que estes pudessem ser contaminados também ao mamar em amas de leite infectadas.

    Em meio a todo esse horror, havia um traço de justiça poética. Em uma igreja manifestamente corrupta, as reveladoras "flores púrpuras" (o eufemismo pelo qual os ataques recorrentes da doença eram conhecidos) decoravam os rostos de padres, cardeais e até de um papa, como prova indisputável de que o celibato não funciona. Quando Martinho Lutero, um monge, se casou com uma freira, forçando a Igreja Católica a resistir uma mudança semelhante em suas fileiras, a sífilis se tornou um dos motivos para que a Igreja Católica continue enfrentando tantos problemas até hoje.

    Ainda que nos últimos anos tenham surgido disputas quanto a ossos europeus anteriores ao século 15 que revelam sintomas parecidos com os da sífilis, o consenso da ciência médica é de que ela representou de fato uma doença nova, trazida por homens que acompanharam Colombo em sua viagem à América em 1492. Em termos de guerra bacteriológica, era uma arma perfeita para responder a devastação que o sarampo e a varíola infligiram, fazendo o percurso oposto.

    Foi só em 1905 que a causa de todos esse sofrimento foi por fim identificada sob o microscópio --a Treponema pallidum, uma bactéria espiroqueta que entra na corrente sanguínea e, se não for tratada, ataca o sistema nervoso, o coração, os órgãos internos e o cérebro; e foi só nos anos 40 que a chegada da penicilina propiciou cura efetiva.

    Boa parte dos detalhes extraordinários que hoje conhecemos sobre a sífilis resultam da crise da Aids. No exato momento em que acreditávamos que antibióticos, a pílula e atitudes mais liberais haviam eliminado a culpa e vergonha associados ao comportamento sexual, chegou do nada uma doença incurável, fatal e altamente contagiosa transmitida sexualmente, desafiando a ciência médica, criando uma crise de saúde pública e redespertando um pânico moral.

    Não surpreende que isso tenha tornado a história da sífilis extremamente relevante, uma vez mais. E o momento teve importância, igualmente, porque nos anos 80 a história mesma estava mudando de foco, da longa marcha da política e do poder às histórias culturais mais íntimas dos homens e mulheres comuns. O crescimento de áreas como a história da medicina e da loucura, por meio do trabalho de historiadores como Roy Porter e Michel Foucault, fez do corpo um tópico rico para os acadêmicos. De repente, o estudo da sífilis se tornou --bem, não há outra palavra para isso-- sexy.

    Os historiadores que vasculharam os arquivos de prisões, hospitais e asilos agora estimam que um quinto da população pode ter sido infectado, em dado momento. Os hospitais londrinos, durante o século 18, mal tratavam uma fração dos pobres, e os pacientes da doença eram chibateados em público para aprender a lição moral.

    Aqueles que podiam pagar pelo tratamento também podiam pagar pelo silêncio --a moderna confidencialidade entre médico e paciente tem suas origens na sífilis. Mas isso nem sempre ajudou. O velho ditado "uma noite com Vênus significa uma vida com Mercúrio" revela toda espécie de horrores, de homens sufocados em banhos de vapor superaquecidos a charlatões que vendiam bebidas de chocolate com mercúrio para que os maridos infectados pudessem tratar suas mulheres e filhos sem que estes soubessem. Até mesmo a moda da corte é parte da história, já que a maquiagem espessa e as marcas de beleza surgiram tanto em resposta a ataques recorrentes de sífilis quanto para ocultar as cicatrizes dos sobreviventes da varíola.

    E temos também os artistas --poetas, pintores, filósofos, compositores. Alguns ostentavam as infecções quase como marca de orgulho-- o conde de Rochester, Casanova, Flaubert em suas cartas. Em "Candide", de Voltaire, Pangloss identifica a origem de sua infecção como um noviço jesuíta que contraiu a doença de uma mulher que a apanhou de um marinheiro no novo mundo. Outros preservavam mais o segredo.

    A vergonha é um censor poderoso na história, e em seus estágios avançados a sífilis, conhecida como "grande imitadora", reproduz os traços de tantas outras doenças que é fácil ocultar a verdade. Livros de investigação por autores como Deborah Hayden ("The Pox: Genius, Madness, and the Mysteries of Syphilis") apontam Schubert, Schumann, Baudelaire, Maupassant, Flaubert, Van Gogh, Nietzsche, Wilde e Joyce como vítimas da doença, e Beethoven e Hitler também podem ter sofrido dela. A questão mais ampla que ela propõe --a do possível efeito da doença sobre o processo criativo-- é mais complicada.

    As caveiras pintadas por Van Gogh e as sublimes obras finais de Schubert certamente mostravam consciência da morte próxima. Mas em 1888, quando Nietzsche, despencando à insanidade, escreveu um livro como "Ecce Homo", a grandiosidade intelectual do trabalho representa gênio ou será a voz da doença? Quando Nietzsche enlouqueceu de vez, a sífilis terciária havia sofrido uma transmutação, infectando-lhe o cérebro e causando paralisia, além de desintegração mental. Mas muitas das vítimas da doença não sabiam disso. Guy de Maupassant, que começou se vangloriando ("posso comer prostitutas de rua e dizer a elas que tenho sífilis; elas ficam com medo e eu só rio"), morreria em um asilo uivando como cachorro, 15 anos mais tarde, e fincando gravetos no jardim e tratando-os como se fossem seus filhos.

    RESERVA DE JOVENS

    No final do século 19, a cultura francesa era um caldo especialmente rico de medo e desejo sexual. Os restaurantes finos de Paris tinham salas privadas nas quais a clientela podia desfrutar de mais que comida, e nos saguões da ópera os espectadores podiam ver e "reservar" jovens mulheres para entretenimento posterior. Ao mesmo tempo, as autoridades estavam detendo, examinando e tratando prostitutas, muitas vezes tarde demais para salvá-las, e às mulheres de seus clientes.

    À medida que o medo crescia, também crescia o interesse por mulheres perturbadas. A clínica de Charcot exibia exemplos de histeria, o que justifica questionar agora até que ponto esse diagnóstico encobria os efeitos da sífilis. Freud apontou para o impacto da doença na família, ao examinar suas primeiras pacientes mulheres.

    "É como eu imaginei. Viverei com a doença pelo resto da vida", disse o romancista Alphonse Daudet depois de um encontro com Charcot na década de 1880. No seu livro "The Land of Pain", traduzido e editado por Julian Barnes em 2002, o escritor não desvia o olhar ao contemplar "os tomentos da cruz: mãos, pés, joelhos, nervos retesados dolorosamente e distendidos até quase o rompimento", uma dor aliviada apenas por uso cada vez mais intenso de morfina: "Cada injeção me ajuda por três ou quatro horas, e depois voltam as picadas 'das vespas', as facadas aqui, acolá, em toda parte, seguidas pela Dor, hóspede cruel... Minha angústia é imensa, e soluço ao escrever".

    É claro que a sífilis ainda não nos deixou --milhões de pessoas em todo o mundo ainda vão contrai-la, e existem informações, especialmente no setor de comércio sexual, de que ela vem se propagando mais nos últimos anos. Mas a vasta maioria dos pacientes será curada por antibióticos antes que a doença se estabeleça. Jamais chegarão ao ponto, como aconteceu com Cesare Borgia no começo do século 16, de ter de usar uma máscara para ocultar a ruína de um rosto que todos concordavam belo, antes da doença.

    O que ele perdeu em vaidade, ganhou em sinistro mistério. Jamais saberemos até que ponto seu comportamento tardio, oscilando entre letargia e energia maníaca, devia ao impacto da doença. Ele sobreviveu por tempo suficiente para ser morto a golpes de espada ao tentar escapar de uma prisão espanhola. Enquanto isso,na cidade de Ferrara, sua amada irmã Lucrezia, então casada com um duque famoso pelas infidelidades conjugais, sofreu repetidos abortos --um poderoso sinal da doença, nas mulheres infectadas. Para aqueles de nós cuja carreira envolve fazer da história ficção, a história da sífilis prova o clichê: a verdade é mais estranha do que qualquer coisa que poderíamos inventar.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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