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    Como crianças enfrentam a dor pela morte de um dos pais

    SUSIE STEINER
    DO "GUARDIAN"

    23/05/2013 12h00

    Shelley Gilbert foi um bebê amado, nascido de pais mais velhos que achavam que não poderiam ter filhos. "Um bebê milagroso", diz ela. "Eu era adorada. No entanto, a alteração hormonal no corpo da minha mãe causou um câncer de mama numa época em que não se falava sobre câncer. Ela morreu quando eu tinha quatro anos."

    Ninguém pensou em contar isso à menina que ficou para trás, nem em conversar com ela sobre a perda.

    "Ela morreu, mas ninguém me disse. Naquela época, era do interesse das pessoas proteger as crianças da dor, e achavam na sua sabedoria que estavam me protegendo ao não falar a respeito, ao não me contar as coisas. Eu fui afastada de todos os ritos funerários."

    A família morava no West End londrino, onde sua mãe era costureira de mão cheia, e seu pai era vendedor de tapetes. Com o pai ainda por perto, a rotina de Gilbert permaneceu praticamente a mesma, com a ajuda de uma governanta e de tias no fim de semana. "Era a época da família estendida, a qual transparecia ser incrivelmente importante. A dificuldade veio quando meu pai morreu."

    Gilbert tinha nove anos quando o pai desmaiou e morreu na sala de estar, vítima de insuficiência cardíaca. Ela se viu órfã, à deriva em um mundo que se recusava a discutir a tristeza ou deixá-la se envolver com essas mortes que a afetavam de modo tão sísmico. O trauma de ser uma criança enlutada em meio a essa "conspiração de silêncio", como ela diz, acabaria por moldar o resto da sua vida.

    "Alguém veio até a casa e eu fui rapidamente conduzida à casa da minha tia", diz ela, relembrando a morte do pai. "Fui levada para longe de todas as coisas que ocorrem em torno da morte e de morrer. Ninguém disse nada. Eu estava na casa da minha tia, permaneci lá por um par de semanas e ficava importunando: 'Posso ligar para o meu pai? Eu quero falar com ele' --só então me contaram. Eu fui a última a saber."

    Gilbert tem dedicado sua vida a contar a verdade sobre a morte às crianças, e a escutar, em troca, seus sentimento sobre o luto. Ela criou uma ONG chamada Grief Encounter [encontro do pesar], que oferece aconselhamento e apoio a crianças que perderam um dos pais ou irmãos. "Uma das minhas campanhas é para tornar as coisas diferentes para as crianças enlutadas de hoje. Elas precisam ser as principais pranteadoras, e precisam ser reconhecidas. Cresci com duas palavras para sentimentos --feliz e triste--, e não havia nada no meio."

    A psicoterapeuta tem pouquíssimas lembranças da agonia da mãe, mas a morte do pai viria a arrancá-la de tudo o que ela conhecia. "Ingenuamente, eu achei que voltaria para a minha casa no West End, mas o que aconteceu é que eu fui morar com a irmã do meu pai, a tia Belle, e com meu tio Nat. Fui adotada por eles e ganhei três irmãos prontos de fábrica, sem os quais eu seria uma pessoa muito diferente de quem eu sou hoje, e na verdade eu tive uma infância muito segura e feliz com eles. Mas ninguém admitiu o lado obscuro. Havia uma tremenda dor ao meu redor quando criança."

    Num esforço para aliviar seu sofrimento, seus tios cortaram todos os seus vínculos com a vida pregressa, como se pudessem apagar o difícil território do luto. "Da noite para o dia, perdi minha casa, minha escola, meus amigos e minha identidade. Sei como é possível chegar perto do limite sendo uma criança enlutada. Eu tinha essa persona muito feliz --um ser falso, uma máscara. Havia muitas lágrimas de solidão à noite. Eu me sentia muito isolada."

    Isso foi na década de 1960, mas Gilbert diz que a enrolação --a sanitização da morte em nome da proteção às crianças-- ainda predomina. Edulcorações como "Mamãe está no céu", "Ela ainda está olhando para você aqui embaixo, ainda está cuidando de você", ou "Deus leva os bons" continuam sendo apresentadas às crianças como uma forma de contornar o trauma.

    Para Gilbert, essas são ideias "com as quais é impossível crescer como criança, porque você quer a sua mamãe com você. Saber que ela não está realmente sobre uma nuvem --isso você sabe desde bem cedo. Você quer que alguém admita que ela não está em casa fritando suas iscas de peixe."

    LUGAR LEGAL

    Gilbert conta a história de gêmeas pequenas que haviam perdido a irmã e ouviram que ela estava no céu. "As duas filhas sobreviventes estavam no banho e a mãe virou as costas para apanhar algumas toalhas, e ao se virar se deparou com uma delas tentando afogar a outra. E a resposta foi que o céu era um lugar tão legal que uma delas iria visitar a irmã morta lá. O céu havia sido transformado em um lugar bom demais. Essas são histórias arriscadas."

    Ela não "passou do limite", como diz. Ia bem na sua amorosa nova família em Edgware, no norte de Londres, e na escola. Foi à faculdade, casou-se e teve quatro filhos. Foi ao estudar para ser psicoterapeuta que suas experiências pessoais começaram a inspirar seu trabalho.

    Em 2003, Gilbert escreveu um livro chamado "Grief Encounter", para ajudar crianças enlutadas e seus cuidadores. Foi um best-seller instantâneo, e levou Gilbert a ser soterrada por mais pedidos de orientação e apoio. Em 2004, surgiu a entidade beneficente. Ela hoje emprega 30 conselheiros, oferece apoio individualizado a 120 famílias por ano, promove oficinas, atendimentos abertos e dias divertidos para reunir crianças enlutadas, e idas a escolas para amparar as crianças lá.

    Uma em cada 29 crianças de 5 a 16 anos já sofreu a perda de um pai ou irmão. Há crianças passando por lutos em cada escola do Reino Unido. E é com frequência na escola que o comportamento problemático é notado pela primeira vez em crianças que não estão lidando bem com isso. Gilbert espera ver uma capacitação adequada nas escolas, para que professores e funcionários lidem de forma sensível com crianças enlutadas, porque o trabalho mais profundo do luto não é nas semanas que cercam o funeral, e sim nos meses e anos seguintes.

    Ela diz: "As pessoas são ótimas para arrumar espaço no começo, quando o mundo para e mandam trazer canja. O que nos interessa é trabalhar contra o mito de que as crianças mais velhas ficam bem --porque é uma dor que você não consegue ver". Ela quer garantir às crianças um espaço para "sofrer ao longo do tempo, uma chance de processar isso. Absorver a realidade disso num nível mais profundo". Ela está trabalhando na busca por um equilíbrio que envolve manter o apego ao pai, à mãe ou ao irmão amado, mas também permitir que a criança siga adiante e redescubra a diversão. "Podemos levar as crianças para um lugar melhor", diz ela.

    Gilbert é contra um tipo de apego piegas à tristeza, que não evolui. Quando cito o sucesso do livro de Joan Didion sobre o luto --"O Ano do Pensamento Mágico"--, ela é ambivalente. "Acho que ela ficou presa", diz ela. "Você de fato precisa tocar sua vida e não ficar presa ao passado." Digamos que a mamãe tenha morrido, diz ela, "aí o papai precisa encontrar uma nova parceira, mas chamamos isso de um novo tipo de normal, em que a mamãe morta tem, sim, um lugar".

    É difícil ler o material do Grief Encounter --os poemas e desenhos das crianças que foram afetadas pela morte na sua família imediata. Há algo de inigualavelmente comovedor em crianças que enfrentam a crueldade aleatória da vida, mas o olhar de Gilbert é resoluto. "É muito difícil suportar a dor das crianças, e é isso que fazemos realmente bem. Nós iremos até os lugares sombrios com elas."

    Fica a sensação de que há lições para todos nós na abertura dela acerca do luto. Todos nós, afinal, iremos perder nossos pais. "Sim, perder um pai [quando se é] mais velho é triste", diz ela. "Mas perder um pai jovem é uma tragédia. É preciso reconhecer como isso é trágico."

    COMO CRIANÇAS ENLUTADAS DIZEM SE SENTIR

    - Estou de mal com o mundo.
    - Não é o fim do mundo, só que é.
    - Isso não passa em um só dia.
    - Minha infância acabou.
    - Minha vida inteira mudou da noite para o dia.
    - Tenho de cuidar dos outros
    - Eu me sinto diferente.
    - Como alguém pode achar que é melhor ter vivido dois anos sem pai do que um ano?
    - Estou tão só.
    - Não quero mais morar nesta casa triste.
    - Será que vou vê-los de novo?
    - Alguém pode me explicar por quê?
    -Eu não fiz o suficiente.
    - A culpa é minha.
    - Quero me lembrar de uma época em que não havia tristeza.
    - Não é justo.
    - Sinto culpa quando estou feliz.
    - Tudo está incompleto.
    - Não me lembro mais da sensação de ter pai.
    - Estou esquecendo como era o jeito dele de falar.
    - Esperam demais de mim.
    - Não sei o que fazer.
    - Fiquei em choque ao me ouvir gargalhar outro dia.
    - As pessoas simplesmente não entendem como os dias estão sendo difíceis agora.
    - Me dá mais um abraço?

    Tradução de RODRIGO LEITE.

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