RESUMO Há um século, o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) formulava o modelo teórico que explicou a estabilidade do átomo e abriria a porta para uma nova concepção da realidade a partir da física quântica. Interlocutor de Einstein e de outros grandes cientistas do século 20, foi também um importante filósofo da ciência.
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Em 19 de junho de 1913, uma carta partiu de Manchester, na Inglaterra, para a Dinamarca. Nela havia a passagem: "Talvez eu tenha feito uma pequena descoberta sobre a estrutura dos átomos. Não conte para ninguém". De pequena, a descoberta nada tinha: ela marcava o início da conquista do interior do átomo pela teoria quântica.
O remetente era um jovem dinamarquês recém-doutorado em física teórica, Niels Bohr (1885-1962). O destinatário era Harald (1887-1951), seu irmão -que faria nome mundial no campo da matemática.
Niels Bohr encerrava um período de estudos com Ernest Rutherford (1871-1937), que havia descoberto, dois anos antes, o núcleo atômico, o caroço central onde se estocam 99% da massa do átomo. O mundo científico não levou o modelo a sério. Nem mesmo Rutherford achava ter feito algo importante.
Antes de Manchester, Bohr havia passado curto período na então catedral mundial da física, o laboratório Cavendish, em Cambridge (Inglaterra), para trabalhar com o descobridor do elétron, Joseph Thomson (1856-1940). Porém seu inglês precaríssimo e certa falta de tato social lhe criaram dificuldades de relacionamento por lá.
Bohr recebeu um convite de Rutherford e aceitou. Foi para Manchester e, após breve atuação como físico experimental -atividade que não era seu forte, pois o dinamarquês era desajeitado-, decidiu retornar à sua área, a teoria.
Aos poucos, sua atenção foi se voltando para o modelo atômico com núcleo proposto por
Rutherford. Este, porém, tinha um problema sério: segundo uma consequência do eletromagnetismo, elétrons, por terem carga elétrica (negativa), perderiam energia ao orbitar o núcleo e acabariam engolidos por este. Átomos, portanto, seriam instáveis; logo, não deveriam existir.
O início da jornada de Bohr para livrar o átomo dessa "incoerência" começou em fevereiro de 1913, quando tomou conhecimento de pesquisas relativas ao modo como os átomos devolvem ao meio a luz (energia) que incide sobre eles. Vista com lentes especiais, a energia expelida se apresenta como raias (linhas paralelas) de cores (frequências) diversas: é o espectro atômico (ou raias espectrais). Cada átomo tem seu conjunto de raias, uma identidade.
Desde que, a partir da década de 1860, os primeiros espectros atômicos passaram a ser medidos, permanecia um mistério: por que raias, e não uma faixa contínua de cores? A resposta demoraria quase 60 anos. E viria de Bohr.
TEORIA
Abandonando o laboratório, Bohr, de volta à teoria, iniciou sua jornada rumo à estrutura atômica após ouvir um colega, o físico-químico húngaro Georg von Hevesy (1885-1966), falar sobre isótopos -variações de um mesmo elemento químico, cujo núcleo tem o mesmo número de prótons, mas diferente quantidade de nêutrons.
Bohr logo percebeu que, na radioatividade, o núcleo, ao expelir nacos de si mesmo, mudaria de posição na tabela periódica, ou seja, os elementos se transformariam. Mais importante: a radioatividade tinha que ser um fenômeno nuclear. Comprovar essas ideias seria ratificar o modelo de Rutherford.
Entusiasmado, Bohr foi cinco vezes a Rutherford. Este -nutrido, talvez, por má compreensão, incredulidade ou falta de tempo- não retribuiu a empolgação do ex-aluno. No ano seguinte, a lei do deslocamento radioativo entraria para o currículo de dois químicos.
Nessa primeira decepção científica de Bohr, há a marca de algo que lhe acompanharia pela vida: a agudeza para relacionar fenômenos aparentemente desconexos.
O segundo subsídio importante foi seu contato com Charles Galton Darwin (1887-1962) -neto do autor de "A Origem das Espécies". Ele tentava entender como partículas alfa (dois prótons unidos a dois nêutrons) perdem energia ao atravessar a matéria, chocando-se quase exclusivamente com os elétrons - nessas colisões, o papel do núcleo é desprezível.
As contas de Darwin não batiam com os resultados experimentais. Bohr notou que o problema vinha do fato de seu colega ter tratado os elétrons como entidades livres no interior atômico.
Bohr concluiu, então, que essas partículas se comportavam como entidades vibratórias (osciladores) que absorviam e expeliam energia e estavam ligadas ao núcleo. Para tanto, ele se baseou nas ideias do físico alemão Max Planck (1858-1947). Em 1900, Planck havia inaugurado a física quântica, ao propor que, na natureza, a energia é gerada ou absorvida em diminutos grânulos (batizados "quanta", plural de "quantum", quantidade em latim). Aplicando a ideia de que a energia trafegava nesses "pacotinhos" (os "quanta"), Bohr conjeturou que os elétrons só poderiam irradiar energia nessa forma.
"Assim, a teoria quântica penetrou o interior do átomo pela primeira vez nos escritos de Bohr" resume, no livro "Niels Bohr's Times", o físico holandês Abraham Pais (1918-2000). O modelo atômico quântico começava a se desenhar; Bohr se firmava como físico.
O terceiro (e mais importante subsídio) foi o contato, em 6 de março de 1913, com a fórmula que descrevia o espectro do átomo de hidrogênio, a fórmula de Balmer -homenagem a um professor de uma escola de meninas em Basileia, o suíço Johann Balmer (1825-98), que teve essa ideia aos 60 anos e só publicou mais dois artigos em vida. A fórmula descrevia e previa, com precisão, as raias coloridas no espectro do átomo de hidrogênio. Mas o que ela significava? Três décadas de mistério se acumulavam até 1913.
Ao vê-la, Bohr -com sua capacidade para juntar fenômenos aparentemente díspares- entendeu o porquê das raias do espectro e, ainda segundo Pais, concluiu que a fórmula estava correta. Além disso, estava convicto de que não seria possível explicar os átomos com a física clássica.
A composição básica do modelo quântico do átomo de hidrogênio estava completa. Sua essência: o elétron, ao girar em torno do núcleo, só pode fazer isso em órbitas predeterminadas. Se receber luz -ou seja, um quantum de energia-, o elétron salta para uma órbita mais energética, passa uma fração de segundo lá e, ao voltar à órbita original, devolve ao meio a energia na forma de um quantum.
É esse processo, repetido continuamente, que dá origem às raias espectrais. O espaçamento entre as linhas (a descontinuidade) é explicado, então, pelo fato de a luz expelida pelos átomos ser quantizada, ter valores discretos.
E assim cerca de 30 anos de mistério desaparecem.
TRILOGIA
Nesse artigo, o primeiro de sua notável trilogia, Bohr propõe um dos postulados mais corajosos da física: em seu estado fundamental (de energia mínima), a órbita do elétron é estável, o que evita que ele seja "engolido" pelo núcleo. Estados mais energéticos (excitados) são instáveis -daí o elétron expelir a luz absorvida.
Aqui é preciso contextualizar: a ideia de usar o quantum de Planck para entender o átomo estava mais ou menos no ar por volta de 1910. Esse enfoque foi usado, por exemplo, pelo físico austríaco Arthur Haas (1884-1941), pelo britânico John Nicholson (1881-1955) e pelo químico dinamarquês Niels Bjerrum (1879-1958). Bohr é, portanto, produto da época. Mas nenhum de seus contemporâneos foi tão longe quanto ele.
No mesmo ano, em setembro e em novembro, Bohr publicou dois outros artigos, desdobramentos do de julho -fechando o que viria a se chamar trilogia Bohr. No de setembro, aplicou as ideias quânticas a átomos mais pesados que o hidrogênio; no de novembro, a moléculas. Textos importantes, sem dúvida, até mesmo para a química, mas sem o impacto do primeiro.
Diferentemente do modelo de Rutherford, o de Bohr teve boa recepção e repercussão -apesar de, para muitos, a ideia central ainda parecer bizarra. Nos anos seguintes, porém, resultados empíricos foram se acumulando. O principal deles confirmava os saltos quânticos. O átomo voltava a ser uma entidade estável, tal como se imaginava na Antiguidade. Anos mais tarde, Albert Einstein classificaria o modelo de Bohr como a "mais alta forma de musicalidade na esfera do pensamento".
Hoje, porém, nota-se que o desdobramento mais importante da trilogia Bohr estava nas entrelinhas: a percepção de que a física clássica -na qual os fenômenos são descritos no espaço e no tempo- não se aplicaria a sistemas atômicos e que seria preciso um profundo reajuste nesse sentido. Eis aí a semente de um fascinante capítulo da história da física: a mecânica quântica.
A essa altura, vale introduzir uma questão intrigante: se a matéria ordinária é formada por átomos, e se estes são entidades discretas -isto é, constituídas por unidades distintas- por que percebemos o mundo como contínuo?
A resposta está em outra monumental contribuição de Bohr para a física, o princípio de correspondência. Nas palavras do físico Fred Alan Wolf, americano conhecido como Dr. Quantum: "Onde o mundo parecer contínuo, as 'regras' da mecânica quântica correspondem às da física clássica". Isso explica por que estas páginas são percebidas como contínuas, e não como grânulos de matéria e "quanta" de energia.
SANTA TRINDADE
A fama de Bohr se consolidou com sete palestras dadas em 1922 em Göttingen, na Alemanha, para uma plateia de físicos e matemáticos da mais alta estirpe. Foi o encontro da santa trindade teórica: Bohr, de Copenhague; Arnold Sommerfeld (1868-1951), de Munique; e Max Born (1882-1970), de Göttingen. Muitos jovens -por exemplo, Werner Heisenberg (1901-76)- foram influenciados pelas ideias ali discutidas. Pelo menos um deles relatou a supremacia do dinamarquês nos debates, o que explica por que, até hoje, o ciclo de palestras é conhecido como Festival Bohr.
Bohr será para sempre lembrado por seu modelo de 1913. Mas, a partir da década de 1920, a imagem de filósofo se consolida. Daí em diante, seus artigos passaram a trazer cada vez mais conceitos em vez de números e fórmulas.
Três eventos principais marcam a faceta filosófica de Bohr, que gerou toda uma indústria acadêmica.
O primeiro é a apresentação do princípio da complementaridade, em setembro de 1927, em Como (Itália). Nesse encontro, ele afirmou que as partículas subatômicas devem ser vistas tanto como corpúsculos quanto como ondas, e que essas duas naturezas são complementares (e necessárias) para o entendimento do mundo microscópico, mas não há experimento que force uma entidade quântica a revelar simultaneamente esses dois comportamentos.
O segundo evento ocorreria um mês depois do encontro em Como. Na conferência Solvay, em Bruxelas, Bohr debateu com Einstein a mecânica quântica, teoria recém-elaborada que, baseada na ideia inicial do quantum de energia, permite descrever fenômenos do universo atômico e subatômico. Einstein imaginou experimentos nos quais tenta mostrar que aquela teoria estava errada, por indicar apenas a probabilidade de um fenômeno ocorrer, não a "certeza", como na física clássica.
Com sua característica agudeza mental, Bohr desbancou cada um dos argumentos de seu colega alemão -baseando-se, ironicamente, na teoria do próprio Einstein.
O terceiro grande momento da visão filosófica de Bohr se deu em 1935, quando Einstein e dois colaboradores esboçaram um experimento imaginário -hoje conhecido como paradoxo EPR-, cujo argumento central era o de que havia "realidades ocultas" das quais a mecânica quântica não dava conta. Logo, a mecânica quântica seria uma teoria incompleta.
No paradoxo EPR, duas partículas interagem e depois se afastam bastante. Para Einstein e colegas, se a mecânica quântica fosse aceita como descrição completa da realidade física, surgiria, então, um tipo de comunicação instantânea entre partículas. E, segundo Einstein, essa "fantasmagórica ação à distância" violaria a teoria da relatividade, que prevê que não pode haver comunicação acima da velocidade da da luz (300 mil km/s).
A resposta dada por Bohr meses depois é um primor: seu foco não é o experimento em si. É, na verdade, uma réplica de natureza filosófica que conclui que uma partícula "sente" instantaneamente o que acontece com a outra, mesmo que estivessem separadas por distâncias astronômicas. E explica: ao interagir, as duas passam a fazer parte de um só sistema -grosso modo, são inseparáveis. Hoje, o emaranhamento, fenômeno bizarro que permite essa "telepatia" quântica, é corriqueiro nos laboratórios -inclusive no Brasil.
A resposta de Bohr ao paradoxo EPR deu ares de vitória à interpretação de Copenhague, como ficou conhecida. A partir daí, aceitaram-se com mais naturalidade as esquisitices da mecânica quântica, segundo a qual entidades quânticas (elétrons, prótons, fótons, átomos etc.) podem estar em dois lugares ao mesmo tempo; ora se comportam como ondas, ora como partículas; comunicam-se em velocidade superior à da luz; e, estranhamente, só se tornam fenômenos (portanto, realidade física) depois de observadas. "Será que a Lua existe quando não olhamos para ela?", ironizou Einstein.
O ponto central da interpretação da mecânica quântica pela escola de Copenhague talvez seja o que diz que objeto e observador integram o mesmo sistema. Einstein jamais aceitou isso, pois acreditou, até a morte, no princípio da separabilidade: coisas distantes no espaço podem ser descritas individualmente. Eis aí o coração da discordância entre ele e Bohr.
É comum atribuir a Bohr, como fez Einstein, características do pensamento positivista -não se pode falar do que não se pode observar (ou medir)- ou de kantismo -a essência das coisas não pode ser conhecida. Segundo o filósofo da ciência Henry J. Folse, essa visão é equivocada. Para ele, e seus argumentos são convincentes, Bohr foi um realista -a associação de suas ideias ao positivismo deu equivocadamente um matiz antirrealista a elas. Elétrons e todas as demais entidades quânticas, apesar da limitação de conhecimento imposta pela teoria, têm realidade física.
O realismo de Bohr, segundo Folse, decorre de sua crença no fato de que a mecânica quântica -que hoje opera com precisão de mais de uma dezena de casas decimais- seja uma teoria completa.
E a principal consequência - árdua para muitos, inclusive Einstein -é a de que seria (e ainda é) preciso um novo conceito de realidade física que harmonize com a teoria do quantum. Para Einstein, aceitar essa completude seria afirmar consequências inaceitáveis, como a de que um objeto interfere em outro, mesmo que afastados por distâncias astronômicas.
Bohr jamais esboçou essa nova concepção de realidade física, por achar que os problemas fundamentais da ciência diziam respeito à comunicação, e não à realidade: a tarefa seria transmitir experiências e ideias a outras pessoas; para ele, a física tratava do que "podemos dizer sobre a natureza" -e não de descobrir como a natureza é.
A visão de Copenhague é a mais popular até hoje, para os ainda poucos que se interessam pelo assunto. Para Abraham Pais, Einstein e Bohr promoveram o maior debate filosófico do século 20. Se a afirmação é forte, por outro lado a esmagadora maioria dos físicos e filósofos da atualidade não tem condições de concordar ou discordar dela, pois praticamente ignoram a essência da questão.
O ultimato de Bohr continua em aberto, portanto.
HOMEM NORMAL
Em um mar de cientistas com comportamentos estranhos, Bohr desponta como um exemplo límpido de homem normal. Pai carinhoso de seis filhos (dois morreram prematuramente e um, Aage, ganharia o Nobel de física em 1975), marido dedicado, bom amigo, homem simples e admirado, é um herói nacional da Dinamarca. A menção a seu nome na alfândega bastava para abreviar a conversa com autoridades, como lembrou o físico austríaco Guido Beck (1903-88). Táxis volta e meia nem cobravam corridas até o Instituto de Física Teórica.
No entanto, era obsessivo ao extremo com o trabalho e a clareza dos artigos, que reescrevia de forma doentia. Paradoxalmente, nunca foi grande palestrante: sua dicção era ruim, e seu pensamento, mais rápido que as palavras.
Sua personalidade era marcante. Então um jovem físico, o brasileiro César Lattes (1924-2005) encontrou-se com Bohr em dezembro de 1947, em Copenhague, após fazer uma palestra na Sociedade Dinamarquesa de Física. Lattes contava que, depois de seu pai, Bohr foi a figura masculina que mais o impressionou na vida.
Bohr foi competente administrador da ciência, defensor de refugiados de guerra, fundador da física biológica e da medicina nuclear, incentivador de talentos. E um pacifista convicto na era nuclear -apesar de ter trabalhado no projeto da bomba atômica. Sempre reconheceu seus (muitos) erros científicos.
Seu agora centenário modelo atômico -que denominava "panqueca", em alusão à forma circular da órbita dos elétrons- é hoje apenas um arremedo do que a mecânica quântica sabe sobre o interior do átomo.
Sua morte, em 18 de novembro de 1962, causou comoção entre a comunidade científica mundial -como ele se manteve na vida pública, talvez tenha sido mais impactante que a morte de Einstein, que viveu em reclusão seus últimos 20 anos.
A síntese de Pais deveria ser considerada: Einstein foi o maior físico do século 20; Bohr, o maior filósofo. As discussões que travaram não eram sobre um fenômeno, uma crença, um aspecto da vida ou detalhe do conhecimento. Foram uma batalha pelo que talvez seja a mais penetrante das questões filosóficas: por que a realidade física é do jeito que é? Eram discussões sobre o cerne da natureza e da linguagem. Nada pode ser mais profundo.