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    A vida de Flaubert sob as lentes de Sartre

    FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

    09/02/2014 03h59

    RESUMO Sai pela primeira vez no país "O Idiota da Família", obra gigantesca e inacabada em que, a partir da vida de Flaubert, Sartre dá corpo às teorias expostas em "Questões de Método". Em três tomos, dos quais dois ainda serão lançados, o filósofo analisa como uma subjetividade se constitui contra seu contexto histórico.

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    Empreendimento gigantesco, projeto intelectual para mais de uma vida: "O Idiota da Família", estudo de Jean-Paul Sartre (1905-80) sobre Gustave Flaubert (1821-80), foi concebido para realizar a possibilidade de uma antropologia estrutural e histórica, em que a realidade humana atingiria uma compreensão plena na figura de um indivíduo dialeticamente concebido como universal singular.

    Os três grandes e densos volumes que Sartre logrou escrever antes que a doença e a morte interrompessem o trabalho -o primeiro dos quais foi recentemente lançado no Brasil [trad. Julia da Rosa Simões, L&PM, R$ 128, 1.112 págs.]- não podem ser vistos como testemunho de um fracasso. Antes se inserem em sua obra constitutivamente incompleta -talvez a ilustração mais eloquente da impossibilidade de finalizar qualquer projeto humano.

    Sartre nos lembrou muitas vezes, ao longo de sua obra, de que a totalidade é irrealizável, pois implicaria a realização da essência da existência, identidade impossível para o existente cujo ser é sempre uma questão para si mesmo.

    Zélia Gattai/Fundação Casa de Jorge Amado
    Jean-Paul Sartre em Ouro Preto (MG), em 1960, fotografado pela escritora Zélia Gattai
    Jean-Paul Sartre em Ouro Preto (MG), em 1960, fotografado pela escritora Zélia Gattai

    Ora, a impossibilidade de um sentido essencial e de uma totalidade não devem nos fazer desistir do conhecimento, embora nos alertem para a necessidade de instrumentos de elucidação que permitam maior aproximação da complexidade da existência histórica.

    "Questões de Método" e "Crítica da Razão Dialética" (editados em um volume pela DP&A, 2002, esgotado) são etapas de uma busca dessa compreensão que se amplia em seu alcance totalizante, mas sem a expectativa de findar em uma totalidade cristalizada. Essa procura é guiada pela noção de processo histórico como percurso marcado por tensões constitutivas, sem possível conciliação numa totalidade pacificada.

    A razão dialética só poderá acompanhar o movimento da história se abandonar a perspectiva de uma conceituação a priori fixada numa estrutura lógica e formal. O movimento dialético só poderá ser apreendido quando sua originalidade metódica triunfar definitivamente sobre os vestígios da tradição analítica que ainda atuam com muito vigor na elaboração do conhecimento histórico.

    "O Idiota da Família" é a tentativa de compreender o processo pelo qual um indivíduo se faz sujeito, por meio da relação dialética entre a liberdade e os fatores que determinam a situação vivida no cruzamento entre uma história pessoal e a história geral da época.

    É nesse sentido que Sartre afirma, no início do prefácio, que o livro é a continuação de "Questões de Método": com efeito, o estudo que depois se tornou a introdução de "Crítica da Razão Dialética" tem como objetivo, como seu título indica, propor modos de estabelecimento de posições teóricas a fim de configurar um saber acerca do homem que não esteja preso nem à
    soberania da consciência, como no estilo clássico, nem à causalidade determinista do marxismo ortodoxo dos anos 1950.

    Essa dupla exclusão, decorrente de uma abordagem crítico-dialética da subjetividade e da história, permite que se incluam na questão humana as duas perspectivas que antes pareciam antagônicas: a singularidade subjetiva e a universalidade histórica.

    Assim, pode-se formular a pergunta: como um indivíduo se constitui ao mesmo tempo como sujeito singular e expressão de condições históricas que o transcendem?

    A história atua sobre o indivíduo, mas como um processo que o faz tornar-se ele mesmo. Não se trata de uma generalidade formal produtora de casos particulares que sob ela logicamente se alinhariam; mas de uma universalidade real dialeticamente relacionada com sujeitos históricos realmente constituídos num processo de livre instituição de si mesmos. Uma racionalidade dialética adequadamente formulada deve permitir a apreensão desse processo de subjetivação em sua efetividade histórica, isto é, a partir do duplo compromisso com a universalidade e com a singularidade.

    DESTINO

    Flaubert é então o "caso concreto" focalizado por Sartre: uma vida terminada, tornada destino pela morte que lhe pôs termo, mas vivida na contingência e nas incertezas dos fatos e das opções que pontuam uma existência.

    Reprodução
    O escritor francês Gustave Flaubert
    O escritor francês Gustave Flaubert

    A realização de uma antropologia verdadeiramente filosófica consiste na determinação de um indivíduo em sua liberdade. Para tanto é preciso, primeiro, o trabalho gigantesco de colher e organizar as informações, no intuito metódico de totalizá-las, já que a totalização real é, nesse caso, tão impossível quanto na vida.

    A investigação de como alguém se torna ele mesmo, em meio à pluralidade de relações efetuadas entre facticidade e liberdade, à interiorização do mundo e do legado familiar e social, bem como as expressões que constituem as reações do sujeito diante das condições objetivas, chama-se, em Sartre, "psicanálise existencial".

    O termo "psicanálise" evoca a compreensão de uma história pessoal. Sartre não aceita todas as noções cunhadas por Freud; sobretudo resiste fortemente à concepção do inconsciente, em razão de sua própria teoria da translucidez da consciência. No entanto, ao considerar relevante a consideração de que o indivíduo é a sua história, valoriza enfaticamente o papel que a infância desempenha no pensamento do fundador da psicanálise.

    É assim que, sobretudo no primeiro volume de "O Idiota da Família", Sartre considerará a infância de Flaubert, sua "proto-história", cenário de elucidação imprescindível para entender como e a partir do que esse homem elaborará sua própria história.

    Por mais vaga que seja a ideia que alguém fizer de si mesmo ao longo da vida, sempre carregará consigo a sua infância: a maneira pela qual cada um está preso a si é principalmente a impossibilidade de se desfazer da própria infância.

    Não se trata apenas de registrar dados biográficos mas de construir a oportunidade de refletir sobre a formação da neurose constitutiva do sujeito; uma estrutura, da qual não está ausente a história, incrustada na singularidade.

    Assim, a subjetivação é dramática, notadamente nos casos em que o sujeito foi aquinhoado com uma sensibilidade que o coloca numa posição especial perante si e os outros. Flaubert já manifestava esta característica desde criança, o que propiciou sua difícil inserção na família e os sofrimentos decorrentes de sua relação com o mundo.

    A gênese e a retrospecção se combinam de algum modo. Como Flaubert fez-se escritor (mais: segundo Sartre, "fundador do romance moderno"), chamará atenção sua relação com as palavras, a entrada da criança no mundo da fala e da escrita.

    A demora em falar, que tanta preocupação causou aos pais, bem poderia ser a recusa de falar -que seria também a recusa dos outros. Sem saber, ou até mesmo sem sentir, o menino Gustave carrega em si esse fardo: a obscura percepção de que não é aceito, de que não corresponde inteiramente à figura do esperado, e que, portanto, não teria por que nem com quem falar.

    A infância é a travessia de um quarto escuro, as zonas de obscuridade da consciência, a dificuldade em corresponder ao que os outros querem de nós -ou ao que querem fazer de nós. Recusar tudo isso é recusar a comunicação; daí o silêncio e o "torpor" de que fala Sartre e que era interpretado pela família como retardo ou idiotia.

    De fato, esse fechamento em si é decepcionante: os pais sentem que não podem criá-lo à imagem de si mesmos, que o filho lhes escapa, e este deficit acaba por ser imputado à criança. Sem que percebam, o amor vai sendo afetado, a relação se desmancha no ato de se formar.

    Mais tarde as suspeitas de que Gustave é menos do que deveria ser se confirmam na entrada, pela leitura e pela escrita, no mundo da cultura que é o dos adultos.

    A transição que deveria ser espontânea é vivida com dificuldade e angústia, como se Flaubert se questionasse precocemente acerca da razão da linguagem. Essa mediação complicada permanecerá no adulto: o grande escritor sempre se moverá com ansiedade entre as palavras e o silêncio.

    Ora, aquele que não fala não assume seu eu: ao não nomear e não interagir, a partir de si, abandona-se à passividade, "refugia-se na impotência". No limite, simula a própria morte, como nos desmaios que o acometerão a partir da adolescência. E, quando tiver que falar, de algum modo também se abandonará às palavras de que habitualmente se faz uso, sem assumir a fala subjetiva. Eis algo que pode ajudar a entender a escrita de Flaubert como o burilamento das palavras, a espécie de precisão preciosa que ele sempre procurou.

    E, no entanto, em tudo isso está em curso o processo de subjetivação, feito de resistência e sofrimento, de escolhas mal discernidas: a interiorização daquele mundo está atravessada pela recusa.

    Como diz Sartre, a crença pode ser tão larga e tão difusa que, de fato, não se crê em nada. A linguagem desempenha esse papel dramático na formação da subjetividade do futuro escritor; e é necessário compreendê-lo para entender o sentido que ele dará à escrita, bem como a relação entre a vida e a arte. Como, enfim, Flaubert fará a experiência de sua própria história; como interiorizará as situações objetivas que viver; como, nele, a universalidade do espírito objetivo se tornará singularidade irredutível de um sujeito às voltas com sua liberdade.

    Sabemos que todo indivíduo é, de início, a interiorização do ambiente familiar em situações objetivas. Mas o lugar comum dessa constatação terá de ser revisto quando compreendermos como alguém pode, por toda sua vida, ser assombrado pela infância.

    O primeiro volume de "O Idiota da Família" permite que acompanhemos a gênese histórica da estrutura neurótica de Flaubert, tão entranhada em sua subjetividade que chega a extrapolar qualquer juízo de pretensões objetivas acerca de um "diagnóstico".

    Recordemos a frase famosa de Sartre: somos aquilo que fazemos com o que querem fazer de nós. Nessa relação complexa situa-se a extraordinária dificuldade do projeto sartriano: "O que se pode saber de um homem?".

    A identidade subjetiva nunca se apresenta como totalidade acabada. É preciso acompanhar o movimento sinuoso da história pessoal, interpretar a heterogeneidade como a totalidade impossível, para chegar a uma visão que transcenda a individualidade e capte a expressão da universalidade no drama singular de uma existência.

    FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA, 66, é professor de filosofia da USP e da Faculdade de São Bento. Escreveu, entre outros, "Ética e Literatura em Sartre" (ed. Unesp).

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