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    Cacofonia pós-Higgs

    SALVADOR NOGUEIRA

    13/04/2014 03h09

    Por que a descoberta deixa o futuro em aberto

    RESUMO Leva de publicações de divulgação científica que tratam da descoberta do bóson de Higgs expõe diferentes visões de cientistas quanto ao significado do feito. Três desses livros ilustram, ainda, os rachas ideológicos quanto aos rumos que podem ou devem ser dados à pesquisa no campo da física de partículas.

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    A descoberta do bóson de Higgs, em julho de 2012, tem importância tão superlativa que é difícil enumerar as razões de sua relevância. Numa tentativa modesta, cabe lembrar que ela completou a teoria física mais bem-sucedida da história da ciência, explicou de onde emerge a massa de todas as partículas e encerrou uma busca de meio século. Ter rendido um prêmio Nobel aos físicos Peter Higgs e François Englert foi apenas a consequência natural de tudo isso.

    Diante da grandeza do achado, não é surpreendente que tenha dado origem a uma enxurrada de livros de divulgação, escritos por cientistas de diversas orientações com o objetivo de explicar ao público de que afinal se trata esse etéreo bóson de Higgs e o que há a se descobrir depois dele.

    Podemos separar os físicos em três categorias. Há os teóricos, que se dedicam a elaborar grandes esquemas de mundo capazes de explicar observações. Já os experimentais desenvolvem métodos para revelar novos fenômenos à moda de Galileu -uma abordagem empírica. Entre essas duas categorias, temos a dos fenomenólogos, que preferem, guiados por resultados experimentais, encontrar explicações teóricas para eles.

    Cada um deles apresenta a descoberta à sua maneira -e logo se vê que eles não concordam muito uns com os outros.

    Entre os teóricos, podemos destacar a prestigiada física americana Lisa Randall, da Universidade Harvard, que publicou "Batendo à Porta do Céu - O Bóson de Higgs e Como a Física Moderna Ilumina o Universo" [trad. Rafael Garcia, Companhia das Letras, 576 págs, R$ 61,50]. Escrito antes mesmo da confirmação de que o bóson de Higgs havia sido encontrado, ele chegou ao Brasil no ano passado.

    O título dá bem o tom da obra. É quase a "bíblia" da física de partículas moderna, com descrições minuciosas de sua "terra santa" -o LHC (sigla inglesa para Grande Colisor de Hádrons), o maior acelerador de partículas do mundo. Foi lá, num túnel subterrâneo com 27 km de circunferência localizado entre a Suíça e a França, que o bóson de Higgs foi detectado.

    O livro de Randall deve agradar àqueles que se interessam pelas minúcias da física envolvida no achado. A própria cientista chega a recomendar que se pulem capítulos caso pareçam aprofundados demais e, sabendo quão minuciosa é a obra, nos alerta logo de cara para o fato de que são, na verdade, dois livros em um. "[Ele] se alterna entre detalhes da ciência sendo feita hoje e reflexões dos temas subjacentes e conceitos que são integrantes da ciência, mas são úteis para compreender também o mundo mais amplo."

    Com essa liberdade, a autora faz uma crítica do papel das religiões na tentativa de descrever a realidade física e comenta como as pessoas deveriam pensar a respeito de riscos, compreendendo como a matemática pode produzir resultados robustos que afastam temores infundados e altamente improváveis. Ela usa o exemplo do temor que chegou a existir de que o LHC fosse produzir um miniburaco negro que engolisse a Terra.

    Como não poderia deixar de ser, ela gasta boa parte do livro para dizer o que vem por aí depois do bóson de Higgs. Na condição de teórica, ela espera que o LHC possa revelar sinais de outras dimensões, além daquelas que conhecemos. Trata-se de uma previsão teórica que ela mesma fez.

    ESPECULAÇÕES

    Os experimentalistas, contudo, não parecem tão animados em sair à caça dessas especulações. Um dos mais célebres deles, o americano Leon Lederman, aproveitou a deixa da descoberta do Higgs para apresentar sua própria visão do futuro da física de partículas -e criticar os teóricos que tentam moldá-la.

    "Nossos cidadãos são muitas vezes confundidos sobre o que a 'big science' [ciência produzida com investimento pesado, envolvendo muitos pesquisadores] está tentando fazer, talvez por culpa do que dizemos a eles, usualmente na mídia. Por exemplo, muitas vezes ouvimos que os aceleradores são construídos para 'descobrir dimensões extra', para 'confirmar a teoria das supercordas', para 'descobrir a supersimetria'. Falso! Os aceleradores são construídos para revelar o que quer que esteja acontecendo na natureza nas menores distâncias, não para acomodar as 'agendas' de várias facções de teóricos."

    A afirmação enfática e crítica figura em seu livro mais recente, "Beyond the God Particle" [Prometheus, R$ 28,88 em e-book] (além da partícula de deus), lançado nos EUA no fim de 2013.

    Não custa lembrar que Lederman, um dos ganhadores do Nobel de Física em 1988, foi o criador do apelido "partícula de Deus", hoje odiado pela maioria dos físicos por parecer dar cunho religioso ao bóson de Higgs. Em 1993, ele usou o termo como título de outro livro, para defender a construção do Superconducting Super Collider (SSC) (super colisor supercondutor), acelerador que seria maior que o LHC, mas acabou cancelado pelo governo americano.

    Na nova obra, escrita com Christopher Hill, Lederman volta a criticar a falta de visão dos líderes de seu país, que deixaram a glória de descobrir o bóson de Higgs escapar para a Europa, e apresenta novos projetos de física de altas energias que possam devolver a vantagem aos EUA.

    No meio do caminho, ele traz as mais ricas descrições da grande explosão pela qual o LHC passou, em 2008, poucos dias após ter entrado em operação, e explica, em termos da física de partículas, por que os cientistas esperavam encontrar o bóson de Higgs.

    Contudo o livro deixa claro que novamente tem uma "agenda": demonstrar que o investimento em "big science" incrementa a economia dos países e, em última análise, se paga com facilidade. E destaca como o americano Fermilab (principal concorrente do Cern, que opera o LHC) pode voltar à fronteira com o Projeto X.

    Trata-se de um acelerador linear que, além de poder vir a revelar pistas da física que existe além do Modelo Padrão -completado com a descoberta do Higgs-, trará aplicações práticas, como a prova de princípio para tecnologias que podem criar usinas nucleares, sem risco de falha, e tratar dejetos radioativos para que eles não mais sirvam ao propósito de construir armas atômicas.

    BRASA

    No fim das contas, vemos tanto Lederman como Randall puxando a brasa para sua sardinha. Nesse contexto, nada é mais saudável do que temperar as duas visões com "O Cerne da Matéria - A Aventura Científica que Levou à Descoberta do Bóson de Higgs" [Companhia das Letras, 216 págs, R$ 39,50], escrito pelo físico brasileiro Rogério Rosenfeld.

    É o raro caso de um livro de divulgação científica voltado para a física que não tem uma "agenda". Rosenfeld nos propicia um tour pela história do estudo das partículas, dos primeiros aceleradores ao LHC, e explica em termos simples como o campo de Higgs, que permeia todo o espaço, produz a massa das outras partículas.

    Livre da necessidade de tentar direcionar o futuro das pesquisas para um lado ou para o outro, o fenomenólogo Rosenfeld escreve a partir de sua experiência pessoal, tendo trabalhado no colisor onde se deu o achado. Embora também esteja esperançoso por novas descobertas, ele admite de forma contundente: "É concebível que o LHC descubra apenas o bóson de Higgs e mais nada. Esse é o pior pesadelo de um físico de partículas".

    O problema é que, sem novas descobertas, fica difícil justificar o desenvolvimento de um acelerador, mais poderoso, capaz de justificar investimentos bilionários. Um vislumbre que seja do que possa haver além do Modelo Padrão será requerido para guiar esforços futuros. Até mesmo Lederman, o entusiasta da física experimental, diz que, nessas circunstâncias, não se poderia recomendar construir um colisor maior que o LHC.

    Há evidências incontestáveis de que o Higgs não é o fim da história. A matéria escura, descoberta pelos astrofísicos, segue sem explicação, assim como a energia escura, que é província dos cosmólogos. Modelos para esclarecer esses fenômenos existem.

    Ao menos por ora, contudo, a experimentação pode estar além do nosso alcance. Isso explica a cacofonia de interpretações para o significado da descoberta da peça que faltava no quebra-cabeça da física do século 20. O futuro, agora, está em aberto.

    SALVADOR NOGUEIRA, 35, é jornalista de ciência, autor de sete livros, entre os quais "Rumo ao Infinito" (Globo), e mantém o blog Mensageiro Sideral, no site da Folha.

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