SOBRE OS TEXTOS O poeta húngaro Miklós Radnóti (1909-44) foi enviado ao campo de concentração de Bor, na atual Sérvia, durante a Segunda Guerra Mundial. Quando os nazistas recuaram, Radnóti e outros foram obrigados a voltar para a Hungria em uma das marchas forçadas, durante a qual ele foi executado. Os textos acima foram encontrados em um caderno de notas no bolso de seu casaco quando o corpo foi exumado de uma vala comum e reunidos por sua viúva, Fanni Gyarmati (1912-2014).
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MARCHA FORÇADA
Louco quem da terra morto se levanta e de novo se arrasta,
e com a dor do nômade movimenta tornozelos e joelhos,
e ainda assim se põe a caminho, como se alçado por asas,
e as valas o chamam em vão, não tem coragem de ficar,
e se você perguntar, por que não? talvez ele responda
que a mulher espera por ele e uma morte mais bonita, mais sábia.
Embora o crédulo esteja louco, porque lá sobre os lares
há muito apenas voam cinzas
a parede da casa desabou, o pé de ameixa se partiu,
e de medo é tormentosa a noite da terra natal.
Oh, se eu pudesse acreditar: que não é apenas no coração que eu levo
tudo que ainda vale a pena, e que existe uma casa à qual voltar;
se ainda existisse! e como em outros tempos na antiga varanda fresca
zumbisse a colmeia da paz, enquanto resfriava a geleia de ameixa,
e o silêncio do final de verão se banhasse ao sol nos jardins sonolentos,
em meio à folhagem frutas pendessem nuas,
e Fanni me esperaria loira diante da cerca vermelha
e lentamente escreveria sombra a lenta manhã, -
mas talvez ainda possa acontecer! A Lua está tão redonda!
Não prossiga, amigo, grite comigo! e vou me levantar!
BOR, 1944, 15 DE SETEMBRO
Foto Eduardo Knapp/Folhapress | ||
CARTÕES-POSTAIS
1
Da Bulgária, a palavra espessa e selvagem dos canhões se derrama,
pisoteia o dorso da montanha, depois hesita e cai,
se atropelam homens, animais, carroças e pensamentos,
o caminho se detém gemente, o céu cacheado desliza.
Você está sempre comigo na confusão incessante,
no fundo da minha consciência você brilha eterna imóvel
e muda, como o anjo que contempla o extermínio,
ou o verme fúnebre que devora a árvore apodrecida.
30 DE AGOSTO DE 1944. ENTRE AS MONTANHAS
2
A nove quilômetros daqui ardem
rolos de feno e casas,
e à margem dos pastos sentados mudos
camponeses horrorizados sorvem cachimbos.
Aqui ainda pregueia a água a pequenina pastora que pisa no lago
e bebem nuvens sobre a água debruçadas as ovelhas felpudas.
CSERVENKA, 6 DE OUTUBRO DE 1944
3
Da boca dos bois escorre saliva sangrenta,
os homens todos urinam sangue,
a companhia se detém em novelos malcheirosos selvagens.
Acima de nós sopra a morte tremenda.1
MOHÁCS, 24 DE OUTUBRO DE 1944
4
Desabei a seu lado, seu corpo se virou
e já estava teso, como corda, quando se rompe.
Tiro na nuca. - Assim será também o seu fim, -
sussurrei para mim mesmo, - continue deitado sereno.
A paciência agora desabrocha em morte. -
Der springt noch auf, - ouvi acima de mim.
No meu ouvido secava sangue misturado a lama.2
SZENTKIRÁLYSZABADJA, 31 DE OUTUBRO DE 1944
Notas do tradutor
1.A palavra "companhia", acima, também significa "século" em húngaro.
2.O companheiro morto era um violinista. A expressão em alemão significa algo como "ele ainda se debate".
MIKLÓS RADNÓTI (1909-44), poeta húngaro, morto pela polícia nazista.
PAULO SCHILLER, 61, psicanalista e tradutor, é autor de "A Vertigem da Imortalidade" (Companhia das Letras).
SÉRGIO SISTER, 65, é artista plástico.