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    Alerta às mulheres sobre o lado sombrio das viagens

    LAUREN WOLFE
    DO "NEW YORK TIMES"

    02/06/2014 12h50

    Entre arbustos calcinados pelo sol e as ruínas das muralhas bizantinas de Istambul, a polícia encontrou o corpo de uma turista norte-americana, Sarai Sierra, 33, em fevereiro de 2013. Sierra, de Nova York, estava fazendo sua primeira viagem ao exterior e desapareceu depois de suas semanas nas quais manteve contato quase constante com sua família. O que aconteceu com ela continua a ser um tanto incerto, mas um homem turco aparentemente confessou tê-la assassinado, depois de supostamente tentar beijá-la.

    Não estamos falando de alguém que tenha sido apanhada no lugar errado e em hora errada. Sierra não se afastou dos percursos turísticos comuns. Não se comportou de modo arriscado. O motivo de sua viagem era praticar a fotografia, de acordo com reportagens. O caso é um exemplo aterrorizante do que pode acontecer –e às vezes acontece– com mulheres viajando no exterior.

    Desde que ela morreu, no começo do ano passado, diversos relatos sobre ataques contra mulheres turistas ganharam manchetes. Uma turista italiana teria sido estuprada por policiais no México, no mesmo mês em que o corpo de Sierra foi encontrado. Uma turista norte-americana foi estuprada em uma loja em Israel em junho do ano passado. Uma mulher norueguesa foi estuprada (e depois presa, por praticar "sexo ilegal"), em Dubai. Ela e o homem acusado do estupro terminaram perdoados no terceiro trimestre do ano passado. Em 15 de janeiro, uma mulher dinamarquesa de 51 anos reportou ter sido estuprada sob ameaça de uma faça em Nova Déli. Ela disse que havia abordado os sete ou oito homens que a atacaram para perguntar como chegar ao seu hotel. Em março, uma mulher britânica disse ter sido estuprada por um segurança em um hotel de luxo no Egito.

    Quer estejamos falando de um ônibus em Nova Déli ou de um hotel de luxo em Acapulco, no México, o risco de uma agressão é onipresente, se os recentes ataques em lugares como esses, que ganharam manchetes, servem de indicação do risco que as viajantes correm. Reportagens como essas causaram alarme para as muitas de nós que nos aventuramos em jornadas para além dos destinos mais comuns, algumas em busca da experiência de imersão que só uma viagem solitária pode propiciar, em uma prática que se torna mais e mais comum.

    Ponderamos nossa integridade física diante de nosso desejo de ver o mundo. Para nós, para as mulheres, o mapa turístico do planeta é diferente, e diante deles somos instruídas a considerar o comprimento de nossas saias e o corte de nossas blusas, a hora do dia em que escolhemos sair à rua e os lugares que devemos considerar como "seguros".

    Mas qual é a realidade da violência contra a mulher, hoje, nos lugares a que desejamos ir –e deveríamos mesmo evitar cidades inteiras devido a esse tipo de risco, como algumas mulheres vêm fazendo? Qual é o risco real para as mulheres que viajam ao exterior, comparado a essa percepção? Conversei com estatísticos e com especialistas em direitos da mulher, e visitei alguns dos países nos quais ocorreram os mais notórios casos recentes, para fazer uma ideia pessoal quanto ao que está acontecendo.

    MANCHETES NA ÍNDIA

    Desde dezembro de 2012, se você perguntar à maioria das pessoas em que país elas pensam quando pensam no estupro de turistas ou outras mulheres, a resposta mais provável será a Índia.

    A brutalidade do estupro coletivo e assassinato de uma jovem estudante de medicina indiana em um ônibus de Nova Déli, em dezembro de 2012, chocou muita gente em todo o mundo. Irromperam numerosos protestos não só na Índia como no exterior, e uma comissão apontada pelo governo indiano estudou a forma pela qual o país processa os perpetradores de violência sexualizada. Mas depois do ataque em Nova Déli, aconteceram outras três agressões contra mulheres que conquistaram manchetes na Índia. Todas as três vítimas eram estrangeiras: uma suíça que foi atacada em uma viagem de camping com o marido, em março de 2013 no estado de Maddhya Pradesh, no centro da Índia; uma mulher britânica atacada em seu quarto de hotel em Agra, logo depois; e uma turista norte-americana de 30 anos na cidade turística de Manali.

    Sanjeev Gupta/Efe
    Polícia apresenta cinco dos seis suspeitos detidos por conexão com o estupro de turista suíça, na Índia
    Polícia apresenta cinco dos seis suspeitos detidos por conexão com o estupro de turista suíça, na Índia

    Esses ataques aparentemente incomodaram as pessoas a ponto de prejudicar o turismo. As Câmeras Associadas de Comércio e Indústria, em Nova Déli, reportaram que, três meses depois da morte da jovem atacada no ônibus, o turismo feminino estrangeiro na Índia havia caído em 35%.

    Ainda assim, a verdade é que outros países são mais perigosos do que a Índia, para as mulheres. Sem estatísticas firmes sobre a violência contra as turistas, o melhor indicador disponível é a violência contra as mulheres locais –que segundo os especialistas é muito mais presente do que os usualmente bem reportados ataques contra turistas.

    "O fato é que a incidência de estupros no México é mais alta do que na Índia", diz Carlos Javier Echarri Cánovas, professor de demografia no Colegio de Mexico e pesquisador da violência contra a mulher. Houve 15 mil queixas de estupro no México em 2010, e praticamente o mesmo número em 2011, de acordo com estatísticas do governo. Echarri explicou que embora 18.359 casos de estupro tenham sido registrados na Índia no primeiro trimestre de 2012, de acordo com o Serviço Nacional de Registros Criminais, a população mexicana é 10 vezes menor que a indiana.

    E no entanto nem mesmo essas estatísticas são conclusivas. As informações sobre estupros em todos os países são prejudicadas pela corrupção e pela disposição cultural de ignorar a violência considerada "normal", mesmo que atinja as pessoas de perto. A narrativa dominante vem sendo a de que quanto mais longe as mulheres ocidentais viajam, mais riscos correm. Mas isso é difícil de identificar estatisticamente. E pode despertar questões sobre o motivo para que tão pouca gente se preocupe com a segurança da mulher na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, um país com mais de 300 milhões de pessoas onde em 2010 mais de 27mil mulheres sofreram estupro e agressão sexual, de acordo com o Departamento da Justiça. (O departamento extraiu dados de entrevistas domiciliares, o que significa que entre esses estupros haverá casos não denunciados à polícia.)

    Os diversos tipos de busca na Internet que conduzi produziram poucas reportagens sobre ataques contra mulheres nesses lugares; há uma reportagem de julho de 2013 sobre uma turista da Geórgia (o Estado, não o país) que denunciou um estupro em Nova York, e outra sobre uma mulher canadense que denunciou ter sido estuprada por policiais em Paris, em abril. No geral, a busca de reportagens sobre estupro de estrangeiras nos Estados Unidos trazia resultados espelhados, ou seja, sobre violência contra mulheres norte-americanas no exterior. Mas isso não significa que haja menos ataques acontecendo em território ocidental.

    Os especialistas apontam que essa tendência, se é possível chamá-la assim, é amplificada pela mídia, que faz com que incidentes individuais pareçam ser parte de um padrão mais amplo. "Em média, os ataques contra mulheres brancas em todo o mundo recebem mais cobertura do que os ataques contra mulheres de cor", diz Christina Finch, diretora do programa de direitos humanos da mulher na Anistia Internacional dos Estados Unidos.

    ESTUDANDO OS NÚMEROS

    Os especialistas com quem conversei não têm como determinar se os ataques contra as mulheres turistas estão de fato aumentando. É difícil obter números sólidos. Nenhum dos grupos consultados –a UN Women, uma agência de promoção da igualdade entre os sexos, e algumas ONGs– tem dados sobre violência contra as mulheres turistas. A Secretaria do Exterior britânica, no entanto, divulga estatísticas sobre o número de britânicas que buscaram ajuda consular depois de sofrerem ataques sexuais no exterior; em 2012/2013, 310 pessoas solicitaram assistência, com 138 dizendo terem sido estupradas e 172 agredidas sexualmente –o que representa alta de 9% e 12% ante o ano anterior, respectivamente, de acordo com números do relatório "Comportamento Britânico no Exterior", preparado pela secretaria.

    Mas esses números dificilmente podem ser entendidos como o total da história. Diversos especialistas me dizem que é possível que a violência esteja em alta porque número maior que nunca de mulheres estão viajando sozinhas, e a destinos cada vez mais distanciados dos polos turísticos convencionais.

    Em termos de números brutos, considere que 25 nos atrás apenas sete milhões de passaportes estavam em circulação nos Estados Unidos, diz John Whiteley, porta-voz do Departamento de Estado norte-americano. Hoje há 118 milhões. Mas Whiteley diz que não está certo de que seja possível divisar uma tendência, no que tange à violência contra as mulheres turistas.

    "Sabemos que, com o passar dos anos, a violência contra a mulher vem sendo cada vez mais comentada e reportada", diz Finch. Ela concorda em que não existe maneira de determinar se houve um crescimento efetivo na violência contra a mulher.

    Dina Deligiorgis, porta-voz da Anistia Internacional dos Estados Unidos diz que a atenção dedicada aos casos de violência contra mulheres e meninas aumentou muito nos últimos cinco a 10 anos, por diversas razões, entre as quais a aprovação de diversas resoluções pelas Nações Unidas e a campanha "unidos para pôr fim à violência contra a mulher", criada pelo secretário-geral da ONU.

    AS MULHERES LOCAIS ESTÃO SEGURAS?

    Todos os especialistas com quem conversei, na Índia, México, Brasil e outros países, dizem que os casos de violência contra turistas estrangeiras não só têm maior probabilidade de chegar ao noticiário como de encontrar solução na Justiça, se comparados aos casos envolvendo mulheres locais.

    Em 6 de fevereiro de 2012, seis turistas espanholas foram estupradas em Acapulco. Em 13 de fevereiro, o procurador geral da Justiça mexicana, Jesus Murillo Karam, declarou que o caso havia sido "resolvido".

    Teresa Inchaustegui, diretora do Centro de Estudos para o Progresso da Mulher e Igualdade dos Sexos, do governo mexicano, disse que embora aquele caso tenha sido resolvido rapidamente, havia milhares de estupros contra mulheres locais não resolvidos a cada ano. E ela apontou que o prefeito de Acapulco inicialmente tentou minimizar o ataque, afirmando que isso prejudicava a imagem da cidade e que violência como essa poderia acontecer "em qualquer lugar do mundo". (Ele mais tarde se desculpou pela declaração.)

    Claudio Vargas/AFP
    Isolados em Acapulco devido às fortes chuvas em 2013, turistas descansam enquanto não deixam o local
    Turistas isolados em Acapulco, no México, devido às fortes chuvas em 2013

    "Sem dúvida existe duplicidade", disse Laura Carlsen, diretora do Programa das Américas no Centro para a Política Internacional, uma organização sem fins lucrativos, sobre a reação dos governos aos casos de estupro de turistas, comparada à que surge diante de ataques a mulheres locais. Uma estatística criminal muito citada no México é a de 98% dos crimes no país passam sem punição.

    Em maio do ano passado, decidi visitar o México porque o país há muito tem posição de destaque no radar internacional de risco –surtos de violência relacionados à guerra contra as drogas espalham corpos decapitados pelo país há anos, e os registros de violência contra as mulheres locais são elevadíssimos. Só em Ciudad Juárez, uma cidade no norte do país, centenas de mulheres foram mortas ou desapareceram de 1993 para cá.

    O Departamento de Defesa dos Estados Unidos alerta que mulheres deveriam evitar viajar sozinhas ao México, "especialmente em áreas isoladas ou à noite", e que estupros e agressões sexuais "continuam a ser problemas sérios nas regiões turísticas".

    No geral, diversas pessoas que estudam questões relacionadas às diferenças entre os sexos no México expressaram posições semelhantes às de Echarri. "Temos uma sociedade patriarcal e misógina, e uma crença arraigada de que as mulheres são propriedade dos homens". Isso bastaria para conduzir a violência sexualizada –quer assédio, quer agressão– e as estrangeiras previsivelmente atraem atenção.

    A holandesa Rachel de Joode vivia no México no ano passado e disse que sentia haver motivos para ser mais cautelosa, como mulher, "simplesmente por conta do que eu ouvia na mídia e em torno de mim". Ela disse que não saía depois das 21h se não conhecesse bem a área e que usava "táxis seguros" (ou seja, chamados pelo telefone, de uma companhia conhecida, e não apanhados na rua).

    A Cidade do México tomou precauções recentemente, criando ônibus só para mulheres –já havia vagões exclusivos para mulheres no metrô– em 2008, e esses serviços propiciavam a diversas mulheres, entre as quais Joode, uma sensação de maior segurança. E embora Joode tenha me dito que foi agarrada em vagões mistos do metrô, algumas vezes, ela tinha passado por experiências parecidas e até piores nas ruas de Berlim e Amsterdã.

    Os guias de viagem "Lonely Planet", orientados a um público mochileiro e mais intrépido, também parecem adotar essa postura de que alguns lugares são menos assustadores do que poderiam parecer. "A despeito de reportagens muitas vezes alarmantes na mídia e dos alertas oficiais, o México em geral é um país seguro para viajar, e com algumas precauções é possível minimizar o risco de problemas", aponta a versão online do guia.

    Em minha meia dúzia de viagens ao México, jamais sofri assédio sexual sério. Mas um policial me solicitou uma propina.

    HÁ QUEM CULPE A VÍTIMA

    Quando o tema é percepção versus realidade, estudar o caso da Turquia pode ser útil. Estive recentemente em Istambul para uma conferência sobre a prevenção de atrocidades. Caminhei pelos mesmos lugares que Sierra percorreu e não senti nenhum outro risco que não o do sol quente queimando minha pele. Mas quando pedi informações sobre como chegar a dado lugar para encontrar um amigo, certa noite na recepção do hotel, fui alertada de que devia tomar cuidado com os homens, lá.

    Como muitas grandes cidades, Istambul tem seus problemas com o crime. Mas o que vi de mais ameaçador no aviso foi que o alerta não envolvia batedores de carteira ou mesmo manifestantes violentos que participavam dos protestos contra o governo que estavam em curso na metade do verão passado. O alerta era de que eu tomasse cuidado com os homens.

    Mesmo assim, diversas agências de turismo com as quais conversei em Istambul disseram que o assassinato de Sierra teve pouco efeito sobre o turismo na Turquia. Dados do governo demonstram que o número de estrangeiros que chegaram à Turquia em maio de 2013 havia crescido em 18% ante o mesmo mês no ano anterior.

    A Istanbul Tour Services disse que não havia registrado cancelamentos ou queda de reservas depois da morte de Sierra. Hakan Kaykiri, o proprietário de uma loja que vende suvenires para turistas no bairro em que Sierra foi encontrada morta, concordou em que o caso não havia afetado seus negócios, descartando a violência como algo comum demais, no mundo todo, para fazer diferença.

    "As mesmas coisas acontecem em toda parte do planeta e não afetam o turismo", ele disse. Mas prosseguiu: "Se a mulher não flertar, um homem não tentaria qualquer coisa, qualquer tipo de assédio. Tudo começa pela mulher".

    Culpar a vítima, como ele faz, não é altamente incomum entre os homens com quem conversei na Turquia. Erkan Turkan, 30, gerente da Volare Tour, de Istambul, me interrompeu quanto eu estava fazendo uma pergunta sobre os efeitos da morte de Sierra nos negócios. "Ela estava procurando encrenca".

    Culpar a vítima não é prática limitada à Turquia. Sara Benson, que trabalha para os guias Lonely Planet desde 1999, descreve um ataque que sofreu na Malásia. Ela estava em uma bicicleta velha e cheia de defeitos, pedalando por uma rota que deveria atualizar para um guia da editora, e um homem de moto começou a persegui-la e insultá-la.

    "Ele ria, gargalhava, fazia gestos de masturbação", ela diz. "E quando deu a volta no quarteirão e voltou a se aproximar, comecei a jogar pedras nele".

    Perturbada, ela procurou a polícia, duas aldeias adiante. Mas a única reação que encontrou foram risos dos policiais, ao descrever a cena, ela conta. "Você é mulher, branca e decidiu viajar sozinha", ela se lembra de um policial ter dito. "Recebeu o que merece".

    COMO MINIMIZAR O RISCO

    Assim, que tipo de precaução uma viajante preocupada deveria tomar? Minimizar riscos, em uma cidade estrangeira ou de seu país, é caso de senso comum, quer você seja mulher, quer seja homem. Uma maneira fácil de fazê-lo é verificar os alertas de viagem do Departamento de Estado norte-americano antes de embarcar; o site é atualizado regularmente e inclui notificações sobre coisas como roubos de automóveis no México e violência sexual nas áreas de manifestações de protesto no Egito. Para atualizações mais específicas quanto às preocupações das mulheres, há muitas listas de discussão sobre viagens disponíveis, entre as quais as do Lonely Planet. E nunca atrapalha ter sempre com você o número de telefone do seu hotel e o da polícia local.

    Um terço das mulheres do planeta sofrerão abusos físicos, sexuais ou de outra ordem em algum momento de suas vidas, de acordo com um estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS) publicado em 2013. Julia Drost, pesquisadora dos direitos da mulher na Anistia Internacional dos Estados Unidos, afirma que esse tipo de violência "não conhece barreiras nacionais ou culturais".

    A questão, portanto, é a seguinte, em resumo: será que toda essa violência –real ou amplificada pela mídia– deveria nos impedir de ver o mundo?

    Para resumir o que parece ser o sentimento subjacente para muitas das mulheres viajantes com quem conversei, Jocelyn Oppenheim, arquiteta de Nova York que fez longas viagens de caminhada pela Índia, disse: "Coisas ruins podem acontecer, mas coisas ruins podem acontecer quando você entre um táxi em Nova York".

    Lauren Wolfe é colunista da revista "Foreign Policy" e diretora do projeto de jornalismo Women Under Siege, do Women's Media Center.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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