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    Shulgin, criador pioneiro de drogas psicodélicas e herói da contracultura

    MIKE POWER
    DO "GUARDIAN"

    06/06/2014 14h24

    Alexander "Sasha" Shulgin, que morreu aos 88 anos, foi um cientista destemido e pioneiro, mas a disciplina que ele escolheu –o projeto e síntese de drogas psicodélicas– é uma das mais vilipendiadas e menos compreendidas. Shulgin inventou centenas de novas drogas psicodélicas, que testou nele mesmo, em sua mulher, Ann, e nos amigos do casal, documentando sua preparação e efeitos. Mas ele não se satisfazia com a simples descoberta –defendia apaixonadamente o direito de um indivíduo a mapear os limites da consciência humana sem interferência do governo.

    Ele se tornou famoso como um dos responsáveis pela criação de uma das drogas de recreação mais populares e duradouras, o MDMA, ou metilenodioximetanfetamina, mais conhecido como ecstasy. Ele não inventou a droga, já que o MDMA foi criada pela companhia farmacêutica Merck em 1912 como um esforço para produzir um agente de coagulação. No entanto, Shulgin foi responsável por desenvolver uma síntese nova e mais fácil do produto.

    Bruno Torturra
    Foto de Shulgin por Bruno Torturra, feita em 2010

    Na época, ele estava pesquisando um produto químico relacionado, o MDA, e em 1976 um jovem colega o informou sobre a atividade incomum do MDMA. Ele apresentou o material a um amigo psiquiatra, Leo Zeff, que ficou atônito diante dos poderes da droga e por isso adiou sua aposentadoria, viajando aos Estados Unidos para ministrar a droga a milhares de pacientes. O MDMA acabou chegando às casas noturnas de Dallas, entre as quais o Starck Club, e à ilha de Ibiza, parte do arquipélago das Baleares, alimentando a moda do acid house e a cultura das raves. Não era intenção de Shulgin lançar uma cultura mundial da droga, e tampouco ter o seu composto consumido com tal abandono por milhões de pessoas. Mas foi sua conexão com o ecstasy que o tornou um herói pop da contracultura, conhecido como "o padrinho do ecstasy", e fez dele uma espécie de demônio pop para muita gente do outro lado do debate.

    Shulgin nasceu em Berkeley, Califórnia, filho de um pai imigrante russo e de uma mãe norte-americana, ambos professores. Ele estudou química orgânica em Harvard, inicialmente, mas deixou a universidade e se alistou na marinha de guerra dos Estados Unidos aos 19 anos de idade. "Dirty Pictures" (2010), a biografia cinematográfica de Shulgin, conta como, durante uma viagem em alto mar, ele decidiu decorar uma enciclopédia de química, achando que isso seria "um desafio bacana".

    Depois de deixar a Marinha, Shulgin se formou em 1949 e se doutorou em bioquímica em 1955 pela Universidade da Califórnia em Berkeley. Ao longo da segunda metade dos anos 50, ele conduziu pesquisas de pós-doutorado em psiquiatria e farmacologia na Universidade da Califórnia em San Francisco e, depois de uma breve passagem pelo Bio-Rad Laboratories, aceitou um emprego na Dow Chemical, onde trabalhava na sintetização de pesticidas. Um deles, o Zectran, foi o primeiro pesticida biodegradável do planeta e propiciou tamanho lucro à empresa que esta concedeu completa liberdade a Shulgin no laboratório, permitindo que ele seguisse seus interesses.

    Bruno Torturra
    Foto de Shulgin por Bruno Torturra, feita em 2010

    Em breve o foco de seus estudos passou a ser a criação de drogas psicodélicas. Como muitos intelectuais dos anos 50, em ambos os lados do Atlântico, ele havia usado, e se deixado fascinar pela, mescalina –uma droga alucinógena extraída do cacto peiote e usada na América Latina para fins religiosos, místicos e de cura tradicionais. Quando Shulgin usou mescalina pela primeira vez, no final dos anos 50, ele conseguiu acesso a lembranças e sentimentos de assombro que não tinha desde a infância.

    "A percepção mais instigante daquele dia foi a de que toda aquela capacidade de recordar havia sido despertada por uma fração de grama de um sólido branco, mas de maneira alguma seria possível argumentar que aquelas memórias estavam contidas no material branco sólido", ele escreveu. "Tudo que eu havia reconhecido veio das profundezas de minha memória e psique. Compreendi que todo o nosso universo está contido na mente e no espírito. Você pode optar por não encontrar o caminho para ele, mas está de fato disponível dentro de nós, e existem produtos químicos que podem catalisar sua disponibilidade".

    Ele percebeu que outras formas da droga poderiam ficar disponíveis se ele mexesse com sua estrutura molecular básica, e depois disso fez dessa tarefa o trabalho de sua vida. Deixou a Dow e em 1965 começou a trabalhar em um laboratório que construiu em casa. Fotografias da época o mostram de jaleco, fumando um cachimbo e com uma boina posicionada sobre a cabeça em ângulo brincalhão, revelando um personagem nada sisudo. Mas ele não demoraria a se estabelecer como o mais conhecido designer de drogas do planeta.

    Em entrevistas, ele sempre mostrava mais animação discutindo questões químicas recônditas do que suas experiências com as drogas em si. "Química é pornografia disfarçada, só é preciso saber que grupo funcional observar", ele disse.

    Shulgin continuou trabalhando no laboratório precário do quintal de sua casa, sob a proteção da Agência de Combate às Drogas (DEA) norte-americana, para a qual ele fornecia consultoria química em casos de drogas. Ele recebeu licença para produzir substâncias da chamada Categoria 1, o equivalente à Classe A na classificação britânica, e a manteve por muitos anos ao sair da Dow.

    Muitas vezes ouvindo a música de Prokofiev, Shostakovich ou Rachmaninov, ele trabalhava em suas pesquisas químicas sempre fumando um cachimbo em meio aos tubos de ensaio borbulhantes. Quando concluía ter inventado alguma coisa digna de nota, experimentava o novo produto –primeiro decidindo sobre a dose mínima que teria efeito, depois tomando um milésimo dessa dose e aumentando lentamente a porção até sentir efeitos. Ele em seguida comparava esses efeitos tomando por base uma escala pessoal que criou sobre as experiências transcendental que suas diversas drogas propiciavam.

    Em 1994, a DEA e outras agências de combate às drogas subitamente conduziram uma busca no laboratório de Shulgin e descobriram amostras de drogas enviadas a ele anonimamente para teste químico. O resultado foi a suspensão de sua licença de trabalho com material da Categoria 1 e uma multa de US$ 25 mil.

    Shulgin ficou irritado por suas descobertas estarem sendo comercializadas e por algumas dela terem causado mortes, entre as quais três por overdose da droga 2C-T-7, em 2000. "Incomoda-me o fato de que algumas pessoas só querem ganhar muito dinheiro e não se preocupam com a segurança ou a pureza", ele disse. "É uma motivação que me causa desconforto. Que as pessoas usem psicodélicos, isso não me causa desconforto. Mas me perturba muito que a curiosidade seja sobrepujada pela cobiça".

    Ele continuou a inovar e a publicar trabalhos, sempre com informações precisas de dosagem. O trabalho de Shulgin valeu bilhões de dólares em lucros ilícitos para terceiros, mas os anos de velhice do cientista foram marcados por preocupações financeiras relacionadas aos seus problemas de saúde, ainda que amigos e seguidores o tenham ajudado. Dois livros, "Pihkal: A Chemical Love Story" (1991) e "Tihkal: the Continuation" (1997), ambos escritos em parceria com Ann, são considerados clássicos nos campos da química orgânica e síntese de drogas ilegais.

    Shulgin deixa sua segunda mulher, Ann, com quem estava casado desde 1981, e três filhos. Um quarto filho, Ted, morreu em 2011.

    Alexander Shulgin, químico, 16/6/1925 - 2/6/2014.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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