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    Como acabar com um grande império

    REINALDO JOSÉ LOPES

    08/06/2014 04h09

    RESUMO Em trilogia de livros, o historiador britânico Peter Heather defende que a culpa pela queda do Império Romano recai sobre ele mesmo. Foram as inovações romanas que, levadas aos povos vizinhos, possibilitaram que pequenos grupos tribais se transformassem em grandes coalizões com poder centralizado.

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    Em uma das muitas piadas antológicas do filme "A Vida de Brian" (1979), sátira dos Evangelhos do grupo britânico Monty Python, revolucionários judeus fazem uma reunião para planejar a luta contra o Império Romano. "Afinal, o que é que os romanos fizeram por nós?", pergunta retoricamente o chefe do grupo. "Os aquedutos", diz um. "O saneamento básico", lembra outro. "E as estradas", aponta um terceiro. E se, na vida real, os avanços materiais trazidos pelo poderio de Roma fossem a principal explicação para o fim do império?

    É mais ou menos o que argumenta o historiador britânico Peter Heather, do King's College de Londres, numa trilogia de livros (ainda que sem citar diretamente o esquete de seus conterrâneos). O foco das obras não está propriamente nos aquedutos e nas estradas construídas dentro das fronteiras imperiais, mas na influência de Roma sobre seus vizinhos europeus, que os romanos, à maneira grega, chamavam de bárbaros.

    Sintetizando uma gama impressionante de dados arqueológicos e relatos históricos, Heather argumenta que a presença das legiões logo ali, do outro lado da fronteira, serviu como catalisador de transformações econômicas, políticas e militares de larga escala na Europa "bárbara". O dinheiro e a manipulação política dos césares teriam sido os principais responsáveis por transformar pequenas unidades tribais em coalizões étnicas de larga escala, com liderança centralizada, fortes o suficiente para abrir buracos na armadura do império e, finalmente, fragmentá-lo.

    As obras de Heather, bem como outros livros recentes, também deixam claro que esse processo não foi algo inexorável nem pode ser dado como concluído em 4 de setembro de 476, data convencionalmente considerada como o fim do Império Romano do Ocidente (quando o imperador-menino Rômulo Augústulo foi deposto pelo líder "bárbaro" Odoacro).

    Para começo de conversa, como a expressão "do Ocidente" deixa claro, as regiões mais ricas, populosas e culturalmente importantes do império -a Grécia, o Egito, a Síria e a Ásia Menor (atual Turquia)- ficavam a leste da Itália, e essas áreas continuaram nas mãos de Constantinopla (hoje, Istambul), a sede do Império Romano do Oriente, depois de 476. No século 6º, os "romanos do Oriente" (termo que os historiadores de hoje preferem a simplesmente "bizantinos") reconquistaram a Itália, boa parte da África do Norte e trechos da Espanha, chegando a refazer parte da unidade imperial perdida.

    Mais importante ainda, mesmo os reinos bárbaros que sucederam Roma no Ocidente continuaram a operar segundo padrões culturais e políticos que eram basicamente romanos, inclusive reconhecendo, ainda que apenas nominalmente, a supremacia dos imperadores remanescentes em Constantinopla.

    REVOLUÇÃO VERDE

    Em dois de seus livros, "The Fall of the Roman Empire: A New History of Rome and the Barbarians" [Oxford University Press, 580 págs., R$ 48,10] (A queda do Império Romano: uma nova história de Roma e dos bárbaros) e "Empires and Barbarians: Migration, Development and the Birth of Europe" [Oxford University Press, 752 págs., R$ 84,30] (Impérios e bárbaros: migração, desenvolvimento e o nascimento da Europa), Heather argumenta que os séculos de convivência entre romanos e seus vizinhos "bárbaros" de língua germânica, separados do Império pelos rios Reno e Danúbio, acabaram forjando adversários muitos mais formidáveis do poderio imperial.

    Uma comparação detalhada entre os territórios germânicos no século 1º d.C., a era dos primeiros césares, e a situação da área 250 anos depois, quando as grandes invasões bárbaras estavam prestes a virar rotina, indica que áreas onde antes podiam ser identificados dezenas (se não centenas) de grupos tribais diferentes agora estavam sob a égide de 10 ou 15 deles.

    Achados arqueológicos dão uma pista do que pode ter acontecido para que se chegasse a esse resultado. O primeiro dado importante é que a agricultura da antiga Germânia parece ter se tornado muito mais produtiva, com uso intensivo de esterco para fertilização, integração entre pecuária e plantio de cereais e técnicas para revolver as camadas mais profundas do solo -coisas que não faziam parte do repertório daquelas pequenas comunidades antes do estabelecimento da fronteira imperial nos rios Reno e Danúbio.

    A hipótese mais razoável para explicar o repentino interesse dos germanos na produção agrícola intensiva é a demanda (tanto pacífica, comercial, quanto mais agressiva, na forma de tributos) gerada pela presença das legiões e das cidades romanas na fronteira. Tanto é assim que ouro e prata de origem mediterrânea passam a figurar cada vez mais nos assentamentos do lado germânico da linha Reno-Danúbio ao longo desse período.

    A história que os dados arqueológicos contam, entretanto, não é simplesmente a de uma pacífica expansão agrícola. Além de metais preciosos, espadas e armaduras de fabricação romana passam a ser importados maciçamente por senhores da guerra germânicos.

    E os túmulos de alguns desses príncipes começam a ser adornados com um fausto até então impensável -pistas tanto de uma intensificação dos conflitos na região quanto do aumento da desigualdade social e da concentração de poder nas mãos de um número menor de líderes.

    Esse processo também teria sido facilitado pelo costume romano de designar parceiros comerciais e políticos preferenciais no lado bárbaro, dando a eles uma posição de destaque e, ocasionalmente, ajuda militar contra seus inimigos.

    Heather conta em detalhes as consequências desse fenômeno em "The Fall of the Roman Empire". Os muitos grupos germânicos (em alguns casos também há os de origem iraniana, como os alanos) acabaram coalescendo em sociedades capazes de colocar no campo de batalha exércitos com dezenas de milhares de soldados e cujos nomes entrariam para a história, como os visigodos, vândalos e francos.

    A consequência lógica do desenvolvimento dessas "novas" etnias seria buscar uma fatia ainda mais substancial da riqueza imperial, primeiro na forma de banditismo endêmico e, mais tarde, com tentativas de se estabelecer no território do império, formando principados "aliados", mas com estrutura política própria e semi-independente.

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    Foi a combinação desse incentivo "positivo" (positivo do ponto de vista dos bárbaros, claro) com outro negativo, a ascensão dos hunos, a tribo do conquistador Átila, na região além do Danúbio, que teria empurrado mais e mais grupos bárbaros para o lado romano da fronteira.

    Do ano 400 em diante, portanto, Roma teve de lidar com dois desafios sérios: os "imigrantes militarizados" germânicos exigindo terras (e os tributos da produção agrícola vindo delas, principal fonte de financiamento do Exército romano) e os próprios hunos, os quais, ao estilo mafioso, exigiam quantidades cada vez mais exorbitantes de ouro para deixar o Império em paz.

    A implosão do poder imperial veio quando os assentamentos bárbaros independentes atingiram uma massa crítica que simplesmente cortou pela raiz a base de impostos que sustentava o Estado romano. O principal candidato a golpe de misericórdia, nesse sentido, foi a instalação dos vândalos na África do Norte, onde ficavam as províncias que eram o celeiro de Roma, nos anos 430. Quando as tentativas de retomar essas províncias falharam, o Ocidente romano passou a ser apenas a Itália.

    Porém, como conta Heather em "The Restoration of Rome" [Macmillan, 524 págs., R$ 33,69, e-book], assim como seu conterrâneo Chris Wickham, da Universidade de Oxford, em "The Inheritance of Rome: Illuminating the Dark Ages" [Penguin Books, 688 págs., R$ 48,30], era cedo para falar em um fim inelutável da visão imperial na Europa.

    Para começo de conversa, a romanização das elites germânicas foi extremamente rápida. Conquistadores como Teodorico, rei dos ostrogodos (475-526) e da Itália pós-romana, tinham entre suas maiores ambições a conquista de títulos como "patrício" e "Augusto" durante suas negociações com Constantinopla. Teodorico conseguiu, aliás, impor sua hegemonia na Espanha e na Gália (atual França) visigótica e sobre os vândalos da África, transformando seu longo reinado numa espécie de ressurreição do Império do Ocidente.

    E foi o vácuo de poder deixado pela morte de Teodorico que permitiu que Justiniano (482-565), o último imperador do Oriente a ter o latim como língua materna, reconquistasse tanto a Itália quanto a antiga África do Norte romana, e até parte do sul da Espanha. O ideal da unidade imperial, argumentam os historiadores, só desapareceria de vez com a ascensão do Islã, no século 7º, que acabou de vez com as ambições de Constantinopla de ser a potência dominante do Mediterrâneo.

    REINALDO JOSÉ LOPES, 35, é jornalista, autor de "Além de Darwin" (Globo) e assina o blog "Darwin e Deus" no site da Folha.

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