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    Geometria radical: a surpreendente arte da América do Sul

    PAUL LAITY
    DO "GUARDIAN"

    04/07/2014 12h00

    Todos as atenções estão voltadas à Copa do Mundo no Brasil, mas uma nova exposição na Royal Academy revela um tipo diferente de arte sul-americana e revela exemplos deslumbrantes da arte geométrica do continente

    Em 1943, o artista uruguaio Joaquín Torres García virou o mundo de cabeça para baixo. Seu "América Invertida" é um simples desenho em papel que coloca Caracas na parte de baixo do mapa e o Polo Sul no topo. O sul se torna o norte. Depois de séculos de condescendência (com a suposição de que o norte –Europa, Estados Unidos– era mais importante que o sul), a peça recuperava elegantemente a importância da América Latina. Graças ao mapa, escreveu o artista, "temos uma ideia verdadeira de nossa posição, e não aquela que o resto do mundo deseja".

    Torres García estava determinado a estabelecer um movimento artístico distintivo e confiante na América do Sul. De muitas maneiras, a excelente e reveladora exposição "Radical Geometry", na Royal Academy britânica, parte da mesma proposta. A mostra defende a ideia de que diferentes tipos de pinturas e esculturas abstratas produzidas no Uruguai, Argentina, Brasil e Venezuela entre os anos 30 e os anos 70 eram tão inovadores quanto qualquer coisa que estivesse sendo tentada "ao norte".

    Projeto Helio Oiticica/Divulgação
    "Metaesquema" (1958), de Helio Oiticica
    "Metaesquema" (1958), de Helio Oiticica

    A maioria das pessoas, se tiver de falar sobre arte latino-americana, pensa nos muralistas mexicanos e nos autorretratos de Frida Kahlo. Mas esta mostra oferece uma rica alternativa.

    A exposição chega em momento oportuno –não só a Copa do Mundo está atraindo atenção para uma outra forma de arte latino-americana mas diversos dos artistas que a mostra abarca vêm sendo discutidos como nunca antes. A venezuelana Gego, mais conhecida por seus delicados trabalhos tridimensionais com arames, vem sendo cada vez mais elogiada, e o mesmo se aplica à brasileira Lygia Clark, cuja série de esculturas "Bichos", dos anos 60, concebidas para serem manipuladas e dobradas em diferentes formatos, foi a maior atração em uma retrospectiva recente, e muito elogiada no Museu de Arte Moderna de Nova York. Em companhia das pictografias intrigantes, inspiradas por motivos incas, de Torres García e das grades de Hélio Oiticica (que também criou trajes em padrões geométricos –"pinturas habitáveis"– para passistas de samba), o trabalho desses artistas surpreenderá os céticos que esperariam variações monótonas do modernismo europeu, ou os não especialistas que podem demonstrar compreensível cautela diante de rótulos como "concretismo" e "neoconcretismo".

    Graças ao reconhecimento que Clark, Gego e outros conquistaram recentemente, se o mundo não está virado de cabeça para baixo, pelo menos se inclinou um pouquinho. Mas a situação era bem diferente quando muitos dos artistas da mostra "Radical Geometry" mostraram seus trabalhos no Reino Unido pela primeira vez –na histórica exposição de arte latino-americana que a galeria Hayward sediou em 1989. O crítico Tim Hilton, resenhando a exposição para o "Guardian", resmungou que "nenhum dos grupos e pouquíssimos dos artistas individuais atingem a alta e continuada criatividade que esperamos da arte mais admirável", enquanto Brian Sewell comentou que a arte do continente não era mais notável que as pinturas nas carrocinhas de jumento da Turquia. São opiniões que só causam embaraço, hoje.

    Sonia Henríquez Ureña de Hlito
    "Ritmos Cromáticos II" (1947), de Alfredo Hlito
    "Ritmos Cromáticos II" (1947), de Alfredo Hlito

    Assim, a mostra da Royal Academy, com curadoria de Adrian Locke e Gabriel Pérez-Barreira, não precisa jogar na defesa. Ela conta quatro histórias, cada qual envolvendo um país diferente e uma era específica. Toda a arte em exposição foi propelida pelo radicalismo –de diversas variedades, quase todo ele político–, enquanto uma onda de abstracionismo varria a América do Sul. No catálogo, Locke elegantemente introduz os contextos político e econômico dos quatro momentos de radicalismo. Montevidéu era uma capital moderna, com amplos bulevares, parques e intelectuais que se reuniam em cafés. Buenos Aires era "uma cidade cosmopolita, com grandiosidade e sofisticação". O Brasil se tornou uma das capitais do mercado mundial de arte no final dos anos 40 e na década de 50, com novas galerias e a bienal de São Paulo –as grandes cidades brasileiras eram centros ativos de pintura abstrata, e não no sentido provinciano, mas no internacional. Na próspera Venezuela, o movimento de arte moderna, influenciando a indústria, ciência e arquitetura, também fazia sentido politicamente. Ajudava o país a parecer vibrante, em voga. O continente era uma região reluzente, de futuro promissor, escolhida por muitos emigrantes europeus de preferência aos Estados Unidos. Um intercâmbio transatlântico de ideias entre a Europa e a América do Sul –algo que muitas vezes não encontra espaço nas histórias da arte– parecia inevitável.

    A primeira das quatro histórias da exposição envolve Torres García, que viveu décadas na Europa antes de retornar a Montevidéu em 1934. Em Barcelona, ele pintou murais com Antoni Gaudí; em Paris, era amigo de Joseph Stella, Marcel Duchamp e Joan Miró, e pintou lindas paisagens urbanas. Mas suas obras mais reconhecíveis parecem ter surgido de duas influências específicas –um interesse intenso pela cultura da América Latina na era anterior a Colombo e pelas composições do pintor holandês Piet Mondrian.

    Museum of Modern Art New York/Divulgação
    "Construção em Branco e Preto" (1938), de Joaquín Torres-García
    "Construção em Branco e Preto" (1938), de Joaquín Torres-García

    O resultado foram seus quadros quadriculados dos anos 30, com tons de terra em compartimentos retangulares de tamanhos variáveis –formando como que uma representação de uma elegante estante. Um exemplo é "Construção em Branco e Preto". O padrão sugere o trabalho inca com pedras, com blocos retangulares inteligentemente encaixados. Em outras peças, as "caixas" contêm sinais –um peixe, um relógio, um rosto, uma roda, um barco, o sol. Torres García iniciou um movimento, de espírito utópico e democrático, que propunha a geometria como chave para toda a arte e buscava incorporar ideias pré-hispânicas, na crença de que símbolos simples se fariam entender não importa quais fossem os antecedentes do espectador. A divisão entre formas de arte "altas" e "baixas" desapareceria e a arte se tornaria acessível para as massas.

    Para difundir suas ideias, ele tinha um programa de rádio, fazia palestras e fundou uma escola, bastante parecida com a Bauhaus. Como Pérez-Barreiro explica no catálogo de "Radical Geometry", Torres García acreditava que um artista devia "criar um estilo de vida e ambiente coerentes, como protótipo de um novo modelo social". Uma causa como essa necessita de discípulos, e seu "Estúdio do Sul" floresceu, ao menos por algum tempo.

    Divulgação
    "Moldura Irregular n.2" (1946), de Juan Melés
    "Moldura Irregular n.2" (1946), de Juan Melés

    Um grupo de jovens artistas revolucionários do lado de lá do rio Prata, em Buenos Aires, definitivamente não estava entre seus leais seguidores. Para Gyula Kosice, Raúl Lozza e Tomás Maldonado, que conduzem a segunda das histórias da mostra, a arte de Torres García, na metade dos anos 40, não era universal e espiritual, mas empoeirada e cafona. Eles encaravam a arte abstrata, de acordo com Pérez-Barreiro, como "resposta urgente a um problema primordialmente político: a construção de uma nova sociedade em linha com os princípios coletivistas do comunismo". A arte figurativa era uma arte burguesa; o abstracionismo era a arte do povo, e a arte podia ser dissolvida em propaganda (manifestos, panfletos distribuídos no metrô). Eles atacavam o presidente populista Juan Domingo Péron como "fascista", e procuravam desestabilizar as convenções da arte, muitas vezes com humor e irreverência. Infelizmente para eles, seus heróis artísticos eram Malevich e Rodchenko, que representavam uma estética há muito proscrita na União Soviética, que havia passado a aprovar apenas o realismo socialista. Em consequência, os artistas abstratos que eram parte do Partido Comunista argentino terminaram expulsos da organização e suas composições de formas geométricas, linhas diagonais e planos coloridos se tornaram, de muitas formas, mais sedutoras quando eles se uniram ao movimento abstracionista internacional mais amplo do pós-guerra.

    Um novo desdobramento em Buenos Aires foi a rejeição por Rhod Rothfuss e outros da moldura convencional, e a adoção de telas de formato assimétrico. Em "Trio Nº 2", de Carmelo Arden Quin, e "Moldura Irregular Nº 2", de Juan Melé, por exemplo, a ideia é permitir que a beirada da pintura desempenhe papel mais ativo –uma tentativa de subverter ainda mais completamente do que em outras formas de arte concretista a ilusão de estar oferecendo uma "janela para o mundo", ilusão para a qual a moldura retangular desempenha papel crucial.

    Na terceira das histórias, o cenário muda para o Brasil dos anos 50, um ambiente muito mais nutritivo do que o da Argentina, para os pintores geométricos. Da mesma maneira que a expressão abstrata resumia uma ideia americana de "liberdade", a linguagem natural da arte brasileira no período era o concretismo, que carregava em si um senso de planejamento e modernidade. Brasília, a capital em estilo brutalista projetada por Oscar Niemeyer, estava em desenvolvimento e, ao contrário da Argentina, onde a política peronista havia esvaziado a classe média, no Brasil a burguesia prosperava. As novas galerias criadas no Rio e em São Paulo estabeleceram o ecossistema necessário para a arte.

    Fundación Gego/Divulgação
    "Sphere" (1976), de Gego
    "Sphere" (1976), de Gego

    Como todos os demais artistas presentes na mostra "Radical Geometry", Waldemar Cordeiro acreditava que a pintura deveria estar completamente livre da realidade observada, e não ter implicações simbólicas. "Defendemos a real linguagem da pintura, expressa com linhas e cores que são linhas e cores e não querem ser peras nem homens", ele escreveu. Os concretistas brasileiros optaram pela geometria rigorosa e por pigmentos audazes, em busca de pura visualidade bidimensional. Cordeiro é representado na mostra pela notável "Ideia Visível", duas formas de concha interligadas sobre uma tela carmesim.

    Depois, em 1959, as coisas mudaram de novo no Brasil com a chegada dos neoconcretistas. O centro de gravidade passou a ser o quente Rio e não a fria São Paulo, e a arte abstrata se tornou menos austeramente racional e mais brincalhona, confortável com a ideia da subjetividade e com a natureza. As grades de Oiticica, no final dos anos 50, mostram alguma flexibilidade: os quadrados parecem estar se agitando, buscando a liberdade.

    "Composição" (1953), de Lygia Clark, com seus retângulos amarelo ovo, azul marinho e verde esmeralda, embora executada impecavelmente, é uma grade de planos da mesma fase que suas pequenas pinturas monocromáticas em cinza, preto e branco. Mas na nova fase, o rigor excessivo se foi. Como Oiticica, ela decidiu que o abstracionismo ultrarracionalista era arte para os conhecedores burgueses, e não para o povo, e que não era participativo o bastante. (Os dois se inspiraram no uso de terapia pela arte em um hospital psiquiátrico local.) A série "Bichos", de Clark, esculturas móveis em alumínio, com jeito de origamis, foi concebida para tornar o espectador parte ativa da obra de arte. Como descreveu Adam Searle, do "Guardian", em sua resenha sobre a retrospectiva de Clark em Nova York, no mês passado, "quando você brinca com elas, essas pequenas formas dotadas de dobradiças se inclinam e se dobram para cá e para lá. O peso delas é agradável, e brincar com elas é uma sensação parecida com a de fazer truques de mágica com um baralho". As capas de Oiticica para uso de sambistas são outra expressão de arte participativa. Da mesma forma, Lygia Pape produziu livros com elementos esculturais semiabstratos que os leitores eram encorajados a pegar nas mãos e investigar.

    A quarta história de "Radical Geometry", na Venezuela, se caracteriza, como a primeira, pelas conexões entre a América Latina e a Europa. Os artistas ópticos e cinéticos Jesús Rafael Soto e Carlos Cruz-Diez cruzaram o Atlântico e se radicaram em Paris. Na direção oposta, Gego, nascida Gertrud Goldschmidt, filha de um banqueiro judeu, deixou a Alemanha em 1939, quando a tensão política estava a ponto de explodir, e se radicou em Caracas. Ela chegou em um período de "boom" econômico, e se viu cercada de artistas consumidos por um senso de novas possibilidades.

    Encorajada por Alejandro Otero e por Soto, que estavam experimentando com o uso da luz e com a percepção, Gego criou obras tridimensionais, primeiro em papel e depois em aço e ferro. Ela batizou suas belas e frágeis estruturas pendentes feitas de arame –uma nova forma de arte abstrata, baseada em linhas– de "Desenhos Sem Papel", se recusando a classificá-las como esculturas. "Radical Geometry" traz meia dúzia de suas peças, entre as quais "Square Reticularea 71/6", que toma a ideia de arte geométrica, tão prevalecente na exposição, e a faz flutuar, sem peso, quase invisível. "Decagonal Trunk No 4" estende a grade a um formato de lanterna chinesa alongada; "Sphere" é uma complicada rede circular de aço; e "Flow No 7" consiste toda de linhas distendidas, como um candelabro desenxabido. São peças que marcam o longo caminho percorrido desde a arte concreta original que influenciou Torres García, e estão entre as muitas revelações visuais que essa mostra fascinante oferece.

    "Radical Geometry: Modern Art of South America from the Patricia Phelps de Cisneros Collection" fica na Royal Academy, London W1, de 5 de julho a 28 de setembro.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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