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    Uma história do agora, encontrada em objetos politicamente carregados

    RACHEL DONADIO
    DO "NEW YORK TIMES", EM LONDRES

    13/07/2014 03h27

    Uma bermuda cargo Primark produzida numa fábrica em Bangladesh que desabou no ano passado, deixando mais de 1.100 mortos. A primeira pistola impressa em 3D. Um cartaz "Occupy Sandy" feito por organizadores de base em Nova York depois da passagem do furacão Sandy.

    Eles estão entre os objetos que serão expostos este mês no museu Victoria & Albert, em Londres, em mostras separadas que ampliam os limites das coleções de museus e do design. A mostra "Rapid Response Collecting" (colecionar em reação rápida), aberta no último fim de semana, traz uma nova maneira de os museus codificarem artigos contemporâneos como sendo históricos, e "Disobedient Objects" (objetos desobedientes), que poderá ser vista a partir de 26 de julho, destaca materiais criados por movimentos sociais pelo mundo afora.

    As mostras funcionam como "agents provocateurs" no interior do Victoria & Albert, o maior museu britânico de arte aplicada e design, desafiando os visitantes a repensar sua relação com objetos do cotidiano e a levar em conta os custos humanos subjacentes a artigos que vão desde roupas produzidas em massa até cigarros eletrônicos. As mostras também incitam a uma reavaliação da história social de outros objetos que fazem parte do imponente acervo do V&A.

    Victoria and Albert Museum/The New York Times
    Sapatos de Christian Louboutin em tons de "nude" que refletem os diferentes tons de pele
    Sapatos de Christian Louboutin em tons de "nude" que refletem os diferentes tons de pele

    "Nem sempre o design diz respeito a mesas e cadeiras belas", disse o diretor do museu, Martin Roght, em entrevista telefônica na semana passada. "O que é surpreendente é que todos esses objetos na verdade pertencem a todo o mundo. O que estamos fazendo é trazer a discussão de fora do museu para dentro dele."

    A coleção em reação rápida representa uma nova estratégia do museu. Os objetos são escolhidos por quatro curadores contratados no ano passado pelo departamento de arquitetura contemporânea, design e digital, encarregados de levar artigos de relevância pontual para o acervo permanente, com rapidez. Os quatro discutem e avaliam os objetos, procurando artigos que contem uma história mais ampla sobre nossos tempos.

    Corinna Gardner, curadora de design de produtos contemporâneos e coleção em reação rápida no museu, disse que o Victoria & Albert sempre teve "um quê de grande mansão no campo". O museu é famoso principalmente por seus têxteis de William Morris e seus conjuntos de chá. A iniciativa de reação rápida foi uma maneira de ampliar o acervo de modo a abranger mais que trabalhos de designers profissionais.

    "É uma busca por modos em que o museu possa agir que sejam pontuais e respondam ao que está acontecendo no mundo que nos cerca", disse Gardner. "É um esforço para olharmos para fora e ver como fatos, coisas importantes que acontecem, se articulam no campo de design, ou como aqueles objetos fazem parte dessa mudança."

    Ivan Cash and Andy Dao/The New York Times
    Nota de 5 libras alterada com crítica à monarquia e a distribuição de renda na Inglaterra
    Nota de 5 libras alterada com crítica à monarquia e a distribuição de renda na Inglaterra

    Os primeiros 12 objetos a ser expostos em rotação contínua –os objetos do momento podem ser encontrados no banco de dados público online do museu– incluem calças cargo pretas feitas para a grife Primark na fábrica de Rana Plaza em Dacca, Bangladesh, que desabou em abril de 2012, matando mais de 1.100 pessoas e gerando indignação mundial com as condições de trabalho na indústria de vestuário. A Primark forneceu as calças para a mostra e confirmou sua origem.

    Também estará em exposição um lobo de pelúcia da Ikea atirado por manifestantes antigoverno contra Leung Chun-ying (cujo apelido é Wolf, ou lobo), a maior autoridade política de Hong Kong, em dezembro passado, além de escarpins em vários tons de "nude", para refletir os tons de pele das diferentes raças, doados pela grife francesa de calçados Christian Louboutin.

    Uma estante contém o Liberator, a primeira pistola impressa em 3D, feita no Texas em 2013 por Cody Wilson, estudante de direito e libertário que postou o design da arma em seu site na internet, até o governo dos EUA ordenar que o tirasse. Os curadores escrevem que a arma "transforma nosso modo de pensar as novas tecnologias de manufatura e a partilha online não regulamentada de designs."

    Victoria and Albert Museum/The New York Times
    Boneco jogado por manifestante em Leung Chun-ying, em Hong Kong
    Boneco jogado por manifestante em Leung Chun-ying, em Hong Kong

    Ao acrescentar artigos produzidos em massa a seu acervo permanente e chamar a atenção às condições de trabalho indignas em que foram produzidos alguns dos objetos, o Victoria & Albert também está assumindo uma posição em relação a quais artigos considera históricos, e assim, inevitavelmente está politizando a coleção em reação rápida. Mas os curadores dizem que não pretendem polemizar.

    "O mais importante é que queremos que o visitante tenha liberdade de imaginação para tirar suas próprias conclusões sobre este objeto", falou Kieran Long, curador sênior de arquitetura contemporânea, design e digital no museu, aludindo à pistola 3D.

    Quanto às calças Primark ou aos cílios postiços promovidos pela pop star Katy Perry e fabricados à mão por mulheres na Indonésia, "o que eu quero que o visitante sinta é o momento em que pode assumir uma posição em relação a uma questão muito complexa, como a manufatura globalizada ou o impacto da tecnologia sobre nossas vidas", Long acrescentou.

    Outros museus estão tomando nota. Em Nova York, o Museu de Arte Moderna incluiu a arma em 3D em um debate online, "Design e Violência". Sebastian Chan, diretor de mídia digital e emergente no museu Cooper Hewitt, Smithsonian Design, em Nova York, descreveu a coleção em reação rápida como "uma iniciativa ousada" que "abre uma nova maneira de o museu engajar o público no contexto social e político dos produtos e serviços criados no mundo que os cerca". Ele disse ainda que quando o Cooper Hewitt reabrir, em dezembro, depois de passar por uma renovação, terá espaço para "nossas próprias iniciativas de reação rápida, e vamos observar o trabalho do V&A muito de perto".

    A reação rápida não é o único experimento feito pelo V&A com a coleção politicamente engajada. "Disobedient Objects", uma mostra de 99 objetos selecionados de movimentos de protesto nas últimas três décadas, ficará em cartaz até 1º de fevereiro. Quase todos os artigos foram cedidos por participantes nos movimentos e não farão parte do acervo permanente do museu.

    A mostra vai incluir fantoches de papel machê e cartolina feitos pelo teatro Bread and Puppet, no Vermont, para protestar contra a primeira guerra do Iraque, buttons dos 1980 de solidariedade com Nelson Mandela, então encarcerado, e pôsteres "Silêncio = Morte" do grupo de ativismo anti-Aids Act Up.

    Será exposto também um paralelepípedo inflável, semelhante a um balão, símbolo de protesto desde o século 19 que foi fabricado em 2012 e usado em manifestações públicas de Berlim a Barcelona, convertendo as interações entre manifestantes e policiais em uma espécie de teatro político.

    A exposição "não é um cânone ou uma palavra final", disse Gavin Grindon, pesquisador visitante no museu. "É um convite para começar a refletir sobre os movimentos sociais." A mostra foi organizada por Grindon e Catherine Flood, curadora de gravuras do Victoria & Albert.

    Os curadores também criaram um blog com manuais de "como fazer" que podem ser descarregados, com instruções para fabricar um escudo em forma de livro ou uma máscara contra gás lacrimogêneo feita de uma garrafa PET.

    Algumas pessoas podem reagir mal diante de uma exposição tão politizada numa instituição financiada por verbas públicas, mas os curadores do Victoria & Albert dizem que o museu tem um longo histórico de coleções socialmente engajadas e que hoje veem sua missão como sendo em parte a exploração do design de movimentos sociais e a história social de objetos do cotidiano.

    "As coisas estão aí fora, nas ruas, então por que não as discutirmos aqui dentro?", disse Roght. "Isso não quer dizer que a gente pense igual. Não quer dizer que apoiamos esse tipo de movimento. É uma plataforma para a discussão."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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